A onda zen

Nós ocidentais vivemos numa onda zen. Todos querem ser zen. Afinal, para nós ocidentais, zen se resume em estado de tranquilidade e felicidade. A partir de algumas leituras da doutrina budista e da prática de alguns exercícios de meditação os falsos budistas se dizem zen. E será que nós ocidentais, impregnados pelo sentimento do apego e pelo desejo de consumo, podemos incorporar os fundamentos do Zen? Para o Zen, experimentar a realidade diretamente é experimentar o nirvana e para isso é preciso desapegar-se de desejos, pessoas, conceitos e discursos. E, para desapegar-se disso, é preciso meditar. E meditar bastará? Na maioria das escolas, os monges rotineiramente meditam entre quatro e seis períodos de 30-40 minutos todos os dias. Conseguiremos tempo para tal? E o restante do tempo que não estaremos meditando e voltamos ao contato com a cultura do consumo, conseguiremos nos manter desapegados? Junto da onda zen instalada no ocidente, tem o perigo de interpretar mal a prática e as técnicas de conscientização budistas. No oriente, o desapego não é exceção é regra, enquanto aqui temos o oposto, inclusive temos dificuldades como é possível amar sem se apegar. A postura de isolamento pode muito bem ser confundida com alienação. Numa compreensão distorcida o budista ocidental pode se instalar numa espécie de casulo mental em que sobre  omundo, com seus dramas e conflitos, não tem uma responsabilidade coletiva, já que o olhar está somente sobre cada um de nós. Pela prática da “aceitação”, simplesmente nos tornamos confortáveis com o status do mundo. O filósofo Nietzsche em sua obra O Anticristo, cita que “na doutrina de Buda, o egoísmo se torna um dever: o “uma só coisa é necessária”, “como te livrar a ti mesmo do sofrimento”, regula e delimita todo o regime espiritual…”.Não significa que o outro está excluído, mas que há primeiro um compromisso comigo mesmo que numa leitura apressada pode levar a pensar que eu me basto e o outro que se resolva. Assim não será difícil distorcer o que seja o budismo. E como pregam os legítimos budistas: Buda não é auto-ajuda. Buda ficaria felicíssimo se nós ocidentais antes de nos acomodarmos no templo para meditar nos reuníssimos nas praças para protestar.

Marcos Kayser

Montaigne: filosofar é aprender a viver

O oposto da vida, a morte, é um tema que os filósofos jamais se cansam. Cícero resumiu que filosofar é aprender a morrer. Significava que pensar frequentemente na morte faria com que não seríamos pego de surpresa por ela. Montaigne pensou exatamente o contrário. Quanto mais pensava na morte, mais se angustiava com ela e não se mostrava capaz de suportá-la, diferentemente dos camponeses de sua época,  século XVI, que apesar de não terem o conhecimento dos filósofos, só pensavam na morte quando estavam morrendo e a natureza cuidava deles.  Montaigne precisou passar por uma experiência de quase morte, quando sofreu um acidente e sua vida ficou pendurada “na ponta dos lábios”, como ele diz, para despreocupar-se com o morrer. A lição filosófica que não foi tirada da habitual introspecção intelectual do filósofo,  mas de um acontecimento factual do homem Montaigne, foi assim resumida por ele: “Se você não souber como morrer, não se preocupe; a Natureza lhe dirá na hora o que fazer, completa e adequadamente. Ela executará perfeitamente este trabalho para você; não ocupe sua cabeça com isto.” Não se preocupar com a morte passou a ser a resposta de Montaigne à pergunta sobre como viver, pois ao morrer não encontraremos a morte pois já nos fomos antes que ela chegue. Morremos na mesma forma que adormecemos. Constatação simples, quase óbvia, porém, nem sempre compreendida e aceita. Pensando assim, não só a fé consola, mas a razão também. Claro que a fé não só consola, como pode propor algo maior do que uma resignação, mas contemplar o desejo de uma vida além. Mas para viver esta vida bem, Montaigne ensina a controlar as emoções e prestar atenção. Controlar as emoções é manter o prumo, sem exultar quando as coisas que vão bem nem se desesperar quando vão mal. Prestar atenção é dar foco no presente, refletir como se sente, fazer o que gosta, não ter culpas e arrependimentos. Fazer do instante presente a própria eternidade. Como diz o escritor e pensador alemão Goethe: “Toda pessoa deveria diariamente escutar um pouco de música delicada, ler um trecho de boa poesia e ver um quadro de bela feitura. Dessa maneira, as preocupações da vida cotidiana não aniquilariam a capacidade que Deus pôs na alma humana de perceber a beleza.”

Paixão: sentimento meio sem razão

Será possível conceituar a paixão? Na filosofia houveram tentativas, apesar de seu instrumento, a razão, não ser muito apropriado. Condillac definia a paixão como “um desejo que não permite ter outros, ou que, pelo menos, é o mais dominante”. A paixão é a inclinação que impede a razão de compará-la com as outras inclinações e assim de fazer uma escolha entre elas. Por isso, a paixão exclui o domínio de si mesmo e, de certa forma, escapa da razão. Kant, outro filósofo, ressalta o poder que a paixão tem de dominar toda a conduta humana e ressalta o perigo que a paixão representa para a escolha racional e aliberdade moral. Mas haverá vida sem paixão? É bom lembrar que nos grandes feitos da humanidade, raramente não se viu a paixão. Descartes define a paixão como “as percepções ou sensações ou excitações da alma… que são causadas, mantidas e amplificadas por alguns movimentos dos espíritos.” Os espíritos para Descartes são os “espíritos animais” centrais à noção de fisiologia de Descartes (não estamos falando de espiritismo). Descartes explica que os espíritos animais são produzidos pelo sangue e são responsáveis por estimular os movimentos do corpo.  Na época de Descartes não se tinha o conhecimento fisiológico que se tem hoje e explicações como esta eram aceitas. Descartes fazia uma distinção entre mente e corpo e a paixão era um movimento do corpo e não da mente. Hoje, mente e corpo formam uma unidade e as paixões são produtos desta união. As paixões, enquanto são sentidas, parecem ser inquestionáveis, mas podemos estar enganados de que as sentimos, enquanto as estamos sentindo. Só saberemos depois. Agora, deveremos então evitar as paixões? E teremos o poder de impedí-las ou limitá-las? O filósofo Rochefoulcauld diz que “se resistimos às nossas paixões, é mais pela fraqueza delas do que pela nossa força”, ou seja, é bem provável que não seja paixão.  Paradoxalmente, a paixão é tão inteligente que ela própria impede que nossa inteligência possa interferir na sua condução. Quem conduz é a paixão, com todos os riscos deste sentimento meio sem razão. Mas ela normalmente tem prazo de validade. É quando a razão é convidada a entrar e saberemos então se de fato foi paixão. Mesmo que a paixão não se transforme em amor, que seria o ideal, podemos pensar que aquele que viveu a paixão ganhou a experiência de viver o que a vida de mais intenso pode oferecer: uma paixão.  Como prova do grau de dificuldade em explicar a paixão, o filósofo Voltaire, usando uma metáfora, tenta conceituar o inconceituável: “As paixões são como as ventanias que incham as velas do navio. Algumas vezes o afundam, mas sem elas não se pode navegar.”