A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DA CONTINGÊNCIA

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO DE FILOSOFIA

SISTEMAS ÉTICOS

A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DA CONTINGÊNCIA

MARCOS KAYSER

São Leopoldo, junho de 2006.

A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DA CONTINGÊNCIA

Introdução

Tentar compreender o mundo implica incursionar por terrenos escorrecadios, por terras proibidas, trabalhar com conceitos que podem esbarrar nos limites da racionalidade humana, dentre eles o conceito de Deus. Tentar explicar Deus pelo viés da ciência é impossível, afinal, a demonstração empírica tem seus limites. Explicar Deus pelo viés da religião é mais tranqüilo, basta a fé, basta dizer: eu creio. Agora, por uma questão de fé, também podemos crer em qualquer coisa, até no absurdo. É quando percebemos a utilidade prática do pensar, da reflexão a partir da dúvida, inclusive sobre Deus, o inquestionável.

A filosofia de Cirne-Lima parece não ter como finalidade primeira explicar Deus, mas acaba, talvez sem intenção explícita, abalando de certa forma todas as ortodoxias, inclusive as do cristianismo. Neste trabalho apresentaremos uma síntese da tentativa de Cirne-Lima, para quem Filosofia é a Ciência do Sistema, em corrigir os Sistemas deixados pela tradição filosófica, mais especificamente o Sistema hegeliano, o último neo-platônico como o próprio Cirne proclama, sem a pretensão de julgar a existência de Deus, mas que acaba colocando o conceito tradicional de Deus sob certa suspeita, ou no mínimo, passível de certas mutações.

Esta investida de Cirne-Lima numa revisão dos grandes Sistemas, sob um olhar moderno, nos parece extremamente apropriada, visto que os últimos grandes cientistas parecem transitar pelo modelo neo-platônico sem se darem conta. Assim, a tarefa de Cirne-Lima encontra eco como base fundamentadora para as novas ciências, em especial a Biologia.

Muito do que aqui registramos é fruto das aulas quase particulares que tivemos com Cirne. Uma graça para os colegas mais cristãos e uma honra para os menos assumidos. Durante um semestre do mestrado de filosofia, tivemos a oportunidade de formar um grupo riquíssimo em curiosidade e disposto a apresentar os devidos questionamentos a nova proposta do mestre.

O objetivo principal deste trabalho não é validar ou invalidar as correções de Cirne, nem provar a existência deste ou daquele Deus, mas, como ele próprio indica, aproximar a Grande Filosofia (a Metafísica dos antigos) das teorias da evolução e de sistemas hoje vigentes, já que a Ciência Maior, a Filosofia, não pode estar separada das ciências menores. Este trabalho serve também para expor as discussões que se desdobraram no âmbito da academia, restritas a um pequeno e privilegiado grupo de mestrandos, podendo, assim, se constituir num texto auxiliar que contribua para a compreensão das idéias inovadoras do pensador. Não é assim que os principiantes demonstram evoluírem para o grau de iniciados?

Duas visões de Mundo – Dois Deuses

Ao longo da história do pensamento ocidental assistimos uma disputa sobre a compreensão do mundo. De um lado uma visão chamada monista e de outro dualista. Uma disputa entre dialéticos e analíticos. Heráclito, Platão, Plotino, Santo Agostinho, Scotus Eriúgena, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Spinoza, Schelling, Hegel, Theillard de Chardin são alguns filósofos que representam a visão monista. Junto deles temos cientistas como Darwin, Bertalanffy, Hawking, Lee Smolen, Erwin Lawslo, Prigogine. Todos podem ser considerados neoplatônicos. Na outra tradição filosófica encontramos Parmênides, Aristóteles, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Descartes, Kant, Wittgenstein, acompanhados por Galileu, Copérnico, Newton e Einstein, são os neoaristotélicos.

Os monistas pensam o Mundo como uma grande unidade, um único princípio, uma totalidade não estática, mas que está em constante movimento, tem necessidade e contingência. Para os dualistas existem, dois princípios irredutíveis, dois mundos separados, um imanente e um transcendente. Um no qual estamos dentro e outro do qual estamos fora, pelo menos enquanto seres humanos, que vivemos sob condições terrenas e não celestiais. Esta dualidade tem origem platônica, do primeiro Platão, anterior a sua obra Parmênides. O mundo daqui, como mundo da sensação, imperfeito, e o mundo de lá, como o mundo das Idéias, perfeito. O primeiro determinado pelo segundo, no qual está escrito o seu destino. O primeiro como cópia do segundo, mas ambos separados. Esta concepção fundamenta o cristianismo que nos acompanha até os dias de hoje.

Quando falamos de monismo e dualismo estamos falando de duas visões do mundo. Uma forma de visualizarmos as distinções entre ambas é perguntarmos: Por que existe algo (o homem, a terra, o universo) e não só o nada? Ou ainda: Qual a razão por que algo existe, podendo não existir? Esta pergunta parte do pressuposto que algo existe, nem que seja pura ilusão sensorial, mas não exclui a possibilidade do nada (não-ser, não existir) estar presente em determinados contextos, compartilhando sua existência com alguma coisa, com algo. Ao fazer esta pergunta estamos mexendo no núcleo duro da filosofia, numa questão que coloca frente à frente necessidade e contingência, determinação e indeterminação, ou melhor, como observa Eduardo Luft, subdeterminação. Subdeterminação pelo fato de que a indeterminação num mundo não dual não é indeterminação pura. Aproveitando o que Heráclito diz: “a indeterminação é uma determinação”. Pode representar uma novidade mas houveram causas determinadas que a geraram. Usa-se o sub no sentido de tornar a linguagem mais próxima da realidade, para distinguir da determinação mais forte, da determinação primeira que é a identidade. A subdeterminação é a contingência que se opõe à identidade, mas não a elimina e sim engendra uma identidade nova. Nesta forma de pensar sistemicamente e, portanto, dialeticamente, a identidade e a contingência se determinam mutuamente. Ou o mundo é pensado monisticamente, como um grande sistema, com subsistemas reunidos dentro dele, ou se pensa o mundo dualisticamente, como mais de um sistema separado um do outro.

Se tomarmos como ponto de partida o princípio da causalidade, que diz que todo o efeito tem uma causa e nesta causa está pré-determinado o efeito, teremos uma teia de nexos causais necessários e cairemos no necessitarismo. O problema do necessitarismo é que compromete a contingência, a espontaneidade, a casualidade e junto a liberdade e a responsabilidade, ou seja, traz sérios problemas no contexto da Ética, da Moral, do Direito e da Justiça.

Num primeiro momento o princípio de causalidade leva-nos a pensar que a causa é externa ao efeito. Agora, não seria possível pensarmos que a causa pode ser interna ao efeito? Ao em vez de um elemento, ou uma substância, ter sido gerada por uma outra substância externa a ela, podemos pensar que uma mesma substância causou a si própria, sem ser determinada por algo exterior. Podemos usar a física para exemplificar. O primeiro átomo (aquele do Big-Bang), foi causado por si mesmo, já continha a potência da multiplicidade que gerou outros átomos. Talvez a física não seja o melhor campo para exemplificar, então podemos ir para a Biologia, a autopoiese do Maturana. Estamos falando de Causa Sui, de auto-causação, de um efeito que o próprio efeito se causou, de um efeito que tem em si a própria causa. Aí estamos falando de auto-determinação, de autonomia, e, em tese, estamos salvando a liberdade e todas as conseqüências que daí decorrem. Todavia, teremos abalado todas as certezas do mundo, inclusive a certeza de Deus, pois não mais é necessária a existência de um Deus Todo Poderoso que é criador que vem antes de nós, que dirige e administra tudo. Em suma, no dualismo temos o comprometimento da liberdade, no monismo temos o comprometimento da certeza. Na visão dualista tem sempre um algo externo que determina, havendo sempre uma pré-determinação. É a questão do desígnio, muito usado na tradição cristã. “Deus quis assim”. “Seja o que Deus quiser”. Deus está num outro mundo e de lá determina. O problema da falta de liberdade implica no problema da falta de responsabilidade. Como não temos liberdade, pois tudo está previamente determinado, a responsabilidade não é minha, mas sim do outro que me determinou. Nesta visão não há espaço para a existência de ninguém, de nenhum eu, nem o eu transcendental de Kant. Já quando inserimos a presença da contingência, abrimos caminho para a possibilidade da liberdade, o que ocorre na visão monista. O que poderia ser necessariamente, pode não ser. O futuro depende de uma decisão minha, aqui e agora. O jogo ainda não foi jogado, está sendo jogado agora. A História não acabou.

Se partirmos do pressuposto que o mundo é, e não somente não é, podemos nos interrogar sobre como existe algo e não tão somente o nada? Primeira opção é que o algo tenha surgido do nada; segunda que o algo tenha sido criado por um outro algo que o antecedeu; terceira que o algo tenha se auto-criado. A primeira opção pode ser refutada pela premissa de que o nada não pode engendrar nada. O nada, nada cria. O nada só pode existir dentro de um contexto em que compartilha a sua (não)existência com um algo. Junto da impossibilidade do nada puro vem a impossibilidade do acaso, pois este sempre terá uma pré-determinação. A segunda opção remete a duas possibilidades: ou o algo foi criado por um algo que o antecedeu e assim sucessivamente e infinitamente, ou o algo foi criado por um algo que o antecedeu até se chegar num primeiro algo que sempre existiu. Ambas as opções se perdem no infinito, nenhuma determinação é mais possível já que o infinito é indeterminado e o indeterminado não pode determinar algo. Agora, se pensarmos numa cadeia não linear, sem início e sem fim, que não vai ao infinito, mas que se fecha em si mesmo, chegaremos a terceira opção da auto-causação. Para pensá-la ainda é imprescindível pensar que o algo está sempre em movimento e, a partir daí, nunca esteve nem estará sozinho, pois estará sempre engendrando uma oposição. Oposição aqui é o mesmo que diferença. Uma pessoa agora sentada na frente do computador, não é a mesma que se levanta para tomar um vinho. Até podemos pensar que se trata da mesma pessoa, mas não identicamente a mesma. Isso é óbvio demais se entendermos que o sempre mesmo não existe na medida em que nos movendo já não somos mais exatamente os mesmos. E assim temos junto da oposição, a determinação mútua, a contingência, a multiplicidade, o novo. No mundo que tem movimento, único mundo possível, tem o tempo, e o algo não é sempre o mesmo. Isto se torna bem mais perceptível quando observamos um ser humano que a cada instante muda, nasce, cresce, morre. Nascimento que não é o começo, pois já havia seres precedentes que o determinaram. Morte que não é o fim pois, mesmo que um determinado ser humano tenha a hereditariedade rompida, ou seja, não tenha filhos, ele se eterniza atomicamente. Como a morte das partes não é possível, o sistema como um todo não entra em colapso. O todo se eterniza na medida em que reina a multiplicidade (circularidade). As partes não morrerem totalmente, porque não são unidades separadas, as partes são relacionais, todas estão relacionadas com todas (Teoria de Sistemas), uma tem sua extensão na outra, formando uma única eterna unidade, um só mundo, uma só substância. Se uma unidade individual morre, parte dela está na outra. Mesmo o primeiro átomo, aquele que sempre existiu não tinha a possibilidade de entrar em colapso, pois nele próprio já havia outros átomos. Há a morte da individualidade, mas não da universalidade. Talvez ficasse melhor compreender pela representação espiral ao em vez do círculo. Só que no caso da representação na forma de espiral há o problema de tanto o início como o fim tendem ao infinito e aí não dá mais para pensar, não dá mais para fazer filosofia.

Quando falamos de um algo que se autocria, podemos nos referir numa totalidade de algos, ou seja, o universo. Universo como único, que engendra tudo, um sistema complexo de relações em que as partes, como se fossem nós de uma teia, estão, de algum modo, vinculados, cujo nó originário é uma única substância, um átomo original, do qual se desdobra a multiplicidade. Fora deste universo não há outros universos que o determinam, pois ele mesmo se auto-determina, é causa de si mesma, e, portanto, contingente. Temos nesta visão de mundo a visão monista.

Quando falamos de um algo que cria outro algo, um externo ao outro, podemos nos referir a duas totalidades distintas. O universo da causa e o universo do efeito, onde o efeito é determinado por uma causa que por sua vez é determinada por uma outra causa antecedente e assim até chegar numa causa incausada: primeiro motor imóvel (Deus). Causa incausada, onde tudo está pré-programado, princípio ontológico, começo de toda série de causas, não podendo ser contingente porque senão remeteria a uma outra causa anterior, portanto, necessária em sua existência. Temos uma visão dualista.

A esta primeira causa, que o cristianismo chama de Deus, que cria o mundo conhecido por nós de um ato livre, acrescenta-se (e isso é Tomaz de Aquino cristianizando Deus) a perfeição absoluta, inclusive sem limites. O pressuposto de que nenhum efeito pode ser mais perfeito que a sua causa, hoje é combatido pelos avanços da Ciência que aponta para o fenômeno da auto-causação (Ludwig von Bertalanffy), pela qual um ser vivo pode se auto-causar e se auto-organizar (sistemas autopoiéticos), como também, pode haver uma causa inferior, gerando um efeito mais complexo (Prigogine) e nisso temos a conjunção de determinação (necessidade) e indeterminação (contingência).

Dentre as dificuldades para aceitar a idéia é de que se Deus é ilimitado, então não possui nenhuma determinação, ou seja, é indeterminado. Só que não é assim que pensam os neotomistas que tentam refutar qualquer possibilidade da contingência em Deus, já que implica em sérias dificuldades para explicar e aceitar as concepções de criação, intervenção e salvação que fundamentam a existência de Deus para o cristianismo. Se Deus é contingente ele pode não ter criado, pode não intevir por nós e pode ainda não nos salvar, o que para os cristãos tradicionais (neotomistas), representa o indesejado, ou seja, a morte de Deus e a morte dos homens.

Os neotomistas ao mesmo tempo que defendem um Deus necessário, não contingente, procuram incorporar a contingência no homem para salvar a liberdade humana. Para isso dizem que Deus é pura determinação, mas os homens possuem livre arbítrio para tomar suas decisões, separando assim o mundo dos homens do mundo de Deus. Criador e criatura se separam para não comprometer o conceito dualista de Deus.

Como se pode observar o embate entre monistas e dualistas causa várias implicações na concepção de Deus. O Deus dos monistas não é o mesmo Deus dos dualistas, pelo menos no que se refere ao Deus que herdamos da cultura cristã. Deus dos monistas é a “alma do mundo”, uma espécie de energia, inserida no cosmos. Ele é o próprio universo eterno com necessidade e contingência. Segundo os panteístas monistas, como Spinoza, tudo é Deus, já para os pananteístas monistas, como Cirne Lima, Deus está em tudo. Chamá-los de ateus? Eles dirão que não. As formas de deus que monistas ou dualistas propõem não excluem deus. se o deus monista é mais contigente, não quer dizer que deixou de ser deus. talvez um deus menos perfeito, mas continua sendo deus, o problema desta forma de deus para o cristinismo é que o mal também está em deus, já que deus está em tudo. Os monistas não são ateus se pensarmos na possibilidade de um outro Deus, sem trazer para a justificação o aspecto da fé. O Deus dos monistas também pode ser chamado de energia, de alma do mundo, de algo bem menos pessoalizado do que o Deus dos dualistas, que é o Deus do cristianismo. O Deus dos monistas não cria o mundo, não intevém e não salva. Por aí podemos ver que estamos falando de um outro Deus, muitíssimo diferente. Mas não estou falando de fé. Mas se pensarmos que o único Deus possível é o Deus cristão, pai de todos, criador e salvador, certamente que os monistas tanto panteístas como pananteístas podem ter seu teísmo posto em suspeição.

A necessidade do primeiro motor, da causa incausada, desaparece na concepção de mundo dos monistas, pois o mundo pode ter sempre existido, o que invalida a criação primeira atribuída ao Deus criador, mas não invalida a existência de Deus. É possível pensar um Deus que seja a própria energia criadora que não necessariamente tenha criado o universo, mas que esteja presente nas criações do dia a dia, manifestas na vida dos homens e da natureza, sem determiná-las absolutamente.

O Deus dos monistas não é o Deus personificado das igrejas, que do céu tudo cria, governa e determina, mas é uma possibilidade (energia ou princípio), que imana e transcende ao mesmo tempo, manifestando-se na ordem que emerge do caos e na complexidade do humano. Um filósofo monista, como Cirne, pensa o Deus-Tese como um princípio importantíssimo, mas mínimo em conteúdo. Já um teólogo crê que este Deus-Tese é tão perfeito quanto possível, embora passível de ulterior perfeição (o amor, segundo Agostinho, sempre permite ulterior perfeição!). A admissão de um Deus-Tese que seja perfeito é uma hipótese que do ponto de vista científico (navalha de Ockham) não precisa e não deve ser admitida como científica. Mas se o teólogo, o crente, tiver razões que o levam a esta admissão, nada a opor. Não surge contradição ou inconsistência sistêmica. E assim se explica e fundamenta a diferença entre pensar e crer, entre o filósofo e o teólogo (sem que uma posição seja simplesmente reduzida à outra, isto é, sem que uma das posições seja eliminada). O Absoluto no sentido estrito é somente o Universo, o sistema todo com suas três partes (tese-antitese-síntese ou identidade-diferença-coerência). Num sentido filosófico mais amplo, cada parte do Todo, enquanto parte, remete para o Todo e, deste modo, remete para o Absoluto. O Absoluto brilha e aparece em cada parte, sem com ela se identificar totalmente. A parte apenas revela o Absoluto, não o expressa plenamente. O Absoluto no sentido filosófico estrito é a Totalidade em Movimento, o que inclui obviamente as três partes do sistema. Na linguagem de Agostinho, o Absoluto no sentido estrito é Deus antes de criar o mundo, mais a Natureza criada, mais o Deus-Homem, a Natureza divinizada pela graça, a Jerusalém Celeste (não há mais espaço para o inferno!…).

Para desconfigurar ainda mais a imagem de Deus dualista, os monistas também descartam o Deus salvador, comprometendo um dos grandes pilares das religiões cristãos que é a imortalidade da alma. Como não é possível para os monistas a existência de dois mundos separados, a salvação após a morte num outro mundo é impossível. Além da inexistência de dois mundos, corpo e alma para os monistas não podem ser separados, um não vive independente do outro. O ser humano como sendo uma unidade corpórea, sem separação de corpo e alma, se morre o corpo, morre a alma, pois corpo e alma são uma única unidade. Assim sendo, para os monistas, na morte perdermos nossa individualidade. Na morte nos diluímos no todo, sem conservar a nossa individualidade que se perde com a cessação do funcionamento fisiológico. Já para os dualistas, permanece vigente a promessa do “paraíso celeste”, onde se concretiza a nossa imortalidade. Como há dois mundos separados, o mundo dos homens e o mundo de Deus, a vida após a morte é viável. Há um outro mundo possível a espera da alma que permanece viva, mesmo após a morte quando se separa do corpo morto, e com ele se reconcilia no dia do juízo. Na morte a alma se liberta do corpo para ir ao encontro de Deus nos céus da divindade. Para os dualistas, corpo e alma não são faces de uma mesma moeda.

Para Cirne Lima, o dualismo apresenta problemas insolúveis na medida em que separa princípios irredutíveis, que não se falam e se afastam do unívoco. Uma das causas é a dificuldade para apresentar as devidas explicações para sua concepção dentro de uma linha de racionalidade que não evoque apenas crença ou imposição dogmática. Por exemplo: como explicar que a alma possa viver sem o corpo? Como explicar a existência de dois mundos, dos homens e de Deus? O primeiro até que os dualistas explicam, mas o segundo é remetido para uma questão de fé e, daí, não se trata mais de filosofia.

Para Cirne, a verdadeira, ou a mais coerente, explicação do mundo está na idéia monista, do Platão do Parmênides e dos neo-platonistas, com as devidas correções, as quais se atreve a fazer, tentando corrigir os problemas deixados principalmente por aquele que considera o último dos filósofos neo-platônicos, Hegel.

A Identidade Dialética

O neoplatonismo hegeliano está exposto à duas grandes objeções. A primeira delas é a acusação de negar o princípio de não contradição e a segunda é que Hegel defende o necessitarismo, comprometendo qualquer possibilidade de liberdade.

Cirne Lima busca corrigir ambas objeções demonstrando que Hegel não está falando de contradição em seu sistema, mas de contrariedade e, por conseqüência, não nega o princípio de não contradição nem é necessitário. Seguindo o quadrado lógico, a regra da contraditoriedade diz que se um é verdadeiro o outro é falso e vice-versa, em ambos os sentidos. Na contrariedade, se A é verdadeiro, E é falso, agora pode ocorrer que A seja falso e E seja falso também, ou seja, ambos podem ser falsos, mas não podem ser ambos verdadeiros. Não se trata do não-ser ser menor do que o ser. não se trata de desvaloração do não-ser. Isso se seria usar um critério moral. O não-ser sempre será negação de algo, precisa de algo para existir. A negação sozinha é o nada e o nada puro não existe. O nada engendra nada. E daí o mundo nem seria. Em termos lógicos não se trata de um demérito do não-ser. Dois não-seres não geram problema algum, agora dois seres que dizem a mesma coisa, sobre o mesmo aspecto, ao mesmo tempo, se anulem. E isso é problema, pois temos uma contradição. Já a falsidade de ambos os opostos em se tratando de contraditórios não é possível. Numa contrariedade, se a proposição “todos os gaúchos são brasileiros” é falsa, porque alguns gaúchos podem ser argentinos e uruguaios (nenhum brasileiro é argentino), a proposição contrária, ou seja, “nenhum gaúcho é brasileiro”, pode ser tanto falsa como verdadeira. Falsa porque se só alguns e não todos os gaúchos são argentinos, sendo alguns brasileiros, não é possível dizer que nenhum gaúcho é brasileiro. Verdadeira porque se é falso que todos os gaúchos são brasileiros é possível que todos os gaúchos sejam argentinos e, por conseqüência, nenhum gaúcho seja brasileiro. Agora se estivermos falando de contradição, ou seja, para a proposição “todos os gaúchos são brasileiros”, ao em vez de “nenhum gaúcho é brasileiro” tivermos “alguns gaúchos não são brasileiros”, ambas não poderão ser falsas, uma das proposições necessariamente deverá ser verdadeira. Se “nenhum gaúcho é brasileiro” for uma proposição falsa, a proposição contraditória, “alguns gaúchos não são brasileiros” será determinada necessariamente a ser verdadeira, não havendo assim espaço para a contingência. Assim, Cirne Lima demonstra haver contingência em Hegel e, portanto, defendê-lo diante da segunda objeção de que a filosofia hegeliana é necessitaria, como também responde à primeira objeção, demonstrando que Hegel não nega o princípio de contradição, pois na verdade o que Hegel quer dizer quando fala em contradição é contrariedade, onde a identidade tem oposição, determinação e diferença.

Em Platão há um primeiro ser que é o Uno, onde Tudo está contido. Dentro do Uno se desdobram dois pólos opostos que se determinam mutuamente. É o jogo dos opostos, a enantia platônica, a relação de dois conceitos que se constituem mutuamente a partir de uma oposição. Não entendemos um pólo sem conhecermos o outro. É assim com o quente e o frio, o alto e o baixo, o belo e o feio. Neste jogo de opostos temos o engendramento da multiplicidade, a dialética que muitos físicos e, especialmente, biólogos, aplicam em suas teorias sem reconhecê-la literalmente. Na Teoria do Caos, o caos dentro de si mesmo engendra variações sem levar o sistema a um caos total, muito pelo contrário, engendra uma ordem em oposição e diferenciação ao caos.

Toda identidade pressupõe uma oposição, uma determinação mútua e uma diferença, não havendo assim uma identidade plena, pelo menos no contexto da existência. Se A se opõe à B, ou A elimina B, ou B elimina A, ou, então, A e B se mostram compatíveis e entram em coerência, surgindo um elemento novo, um C, ou um D, ou um F, enfim, um outro que forma novos pares de opostos, que se mantém integrados ao sistema de relações. Sistema que é a própria totalidade, a substância única citada por Spinoza, formada a partir das relações do que consideramos coisas, mas não passam de configurações de relações que, por serem mais ou menos estáveis, aparentam ser coisas. Assim, tudo é relativo, com exceção do fato de que tudo seja relativo. Absoluto é somente e tão somente o fato de que tudo é relativo. Como dizia Heráclito: “tudo muda exceto a mudança”. E como o Universo é movimento, mudança, o Universo, o todo, é absoluto.

Para leitores desprovidos de uma maior atenção, Cirne-Lima pode ser confundido como quem se diz monista mas, ao mesmo tempo, opera com uma dualidade dentro de sua teoria, na medida em que fala do mundo dos possíveis e do mundo dos existentes. Para Cirne estes dois mundos, que são representados pela lógica e pela natureza, estão num só mundo, no único mundo possível, o mundo da totalidade em movimento. Mundos que estão continuamente imbricados. A lógica não se naturaliza, o que não significa dizer que a natureza não tenha lógica. Tem sim, a ponto de criar uma linguagem.

Para ilustrar a visão de mundo monista, da moeda que tem dois lados indivisíveis, poderíamos recorrer a um círculo recheado de outros círculos apesar de ser uma ilustração fraca, pois não consegue ser fiel ao seu pensamento. O problema principal é que o círculo não representa bem uma evolução, pelo contrário aparenta não evolução. Se escolhermos um determinado ponto num circulo, partindo dele retornaremos ao mesmo ponto, ao mesmo lugar de onde partimos. Com isso, parece não termos evoluído no tempo e parece não ter havido movimento. É como se tivéssemos ficado parados no mesmo lugar, o que foge da representação da idéia monista. Outra tentativa de representar seria uma espiral que, por sua vez, demonstra a evolução, mas tem o problema do ponto inicial, do ponto de partida que na teoria monista não deve existir, pois não há um ponto inicial nem um ponto final, pois estas determinações impedem a contingência. Precisa haver uma “eternidade em movimento”.

A concepção de universo na linha de pensamento de Cirne sugeriria um círculo, atemporal, eterno (sem início e sem fim) e sem contingência onde se situaria a lógica, a matemática e tudo que denominamos de apriori. Similar ao “eterno momento presente” de Hegel e a “eternidade em movimento” de Agostinho. Dentro deste círculo existem estruturas lineares e curvilíneas, temporais, com início e fim em pontos da circularidade. Estas estruturas representariam a vida individual dos seres vivos que são sistemas auto-organizados e, portanto, fechados no ponto de vista organizacional e abertos no ponto de vista energético e informacional. Energia que não vem de fora do círculo, pois aqui nada está fora, no que, em termos da representação, reside um problema. O problema a que o círculo nos incita pensar é a existência de um fora do círculo, ou seja, o mundo de dentro e o mundo de fora. Está separação tornaria dualista a teoria monista e, portanto, a representação como foi descrita anteriormente estaria incompatível com a realidade que desejávamos representar.

Buscando ilustrar a idéia monista da identidade dialética, poderíamos usar um exemplo pragmático o sorteio que antecede o início de um jogo de futebol. O momento (1) em que a moeda está na palma da mão do juiz, com um dos lados voltados para cima, é a fase necessária sem contingência. O momento (2) em que a moeda está no ar, tendo os dois lados com iguais probabilidades de terem a face virada para cima, quando a moeda encontrar o chão, corresponde a fase da contingência. O momento (3), quando a moeda no chão tem um dos lados voltados para cima, é a fase novamente da necessidade, mas não exatamente com o mesmo conteúdo, a mesma necessidade do momento (1), pois a face pode não ser a mesma.

Mas se ainda não há uma representação gráfica possível, há a possibilidade de cientificamente obter demonstrações de pertinência da Identidade Dialética, através da teoria da evolução das espécies de Darwin e da teoria de sistemas de Bertalanffy.

Conclusão

Muito distante de uma conclusão, nos reservamos a apresentar algumas considerações sobre nossa compreensão a respeito das mais recentes investidas de Cirne Lima, sobre a tentativa de explicar o mundo a partir de uma perspectiva neoplatônica, com as devidas e imprescindíveis correções de Hegel.

Demonstrar que Hegel não trabalha com contraditórios, mas com contrários, num primeiro momento pode parecer apenas um detalhe, sem grandes conseqüências. Todavia, numa análise mais profunda nos deparamos com uma diferenciação que causa sérias mudanças na interpretação do pensador. Estamos falando da abertura do sistema, no qual antes desta correção tudo era necessário, sem contingência, sem multiplicidade e sem liberdade.

A História não está mais determinada. O que está determinado no presente momento é a história do passado, mas a história do futuro não. Esta está totalmente aberta. O passado é necessário, o futuro não. O futuro é necessário quando se concretiza e, aí, não é mais futuro, é presente existente. Num sorteio, a moeda quando atirada para cima, enquanto está no ar tem um futuro contingente. Seus dois lados têm igual probabilidade de serem vencedores, de se concretizarem e não concretizarem. Após cair no chão a definição do lado torna a decisão necessária. O futuro se concretiza e não é mais contingente e, também, não é mais futuro é presente. Pronto para um novo jogo e, quem, sabe um novo resultado. A casualidade age durante o processo. Enquanto a moeda estava no ar tínhamos o jogo da efetividade e da possibilidade com a presença da contingência, do acaso.

É este acaso, presente fortemente também nas teorias de Darwin, Bertalanffy, Prigogine e Lee Smolin que por uma questão de coerência levará Cirne e outros monistas a pensarem um outro Deus. Um Deus que se distancia do Deus determinista. Um Deus não mais tão onipotente, pois assim como pode também não pode. O que não significa dizer que este outro Deus represente mais garantias de eternidade (ou imortalidade). Muito pelo contrário este outro Deus acaba com as garantias. Assim, se por um lado, a liberdade está salva, por outro, o mundo das certezas morre com a correção feita por Cirne Lima. Agora, no campo da filosofia prática, ou seja, da ética e da política, cabe saber, o que fazer com toda esta liberdade. Uma dialética humanista é possível?

Bibliografia

Capra, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2002.

Cirne-Lima, Carlos. Dialética para Principiantes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

Darwin, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo: Martin Claret, 2005.

Hegel. Os Pensadores. São Paulo: Nova cultural, 2000.

Lawslo, Ervin. Conexão Cósmica, Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

Luft, Eduardo. O Princípio da Coerência, Rio de Janeiro: Editora Brasileira, 2005.

Prigogine, Ilya. O Fim das Certezas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

Smolin, Lee. A Vida do Cosmos. São Leopoldo: UNISINOS, 2004.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.