Arquivo da categoria: Trabalhos da Filosofia

A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DA CONTINGÊNCIA

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO DE FILOSOFIA

SISTEMAS ÉTICOS

A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DA CONTINGÊNCIA

MARCOS KAYSER

São Leopoldo, junho de 2006.

A NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DA CONTINGÊNCIA

Introdução

Tentar compreender o mundo implica incursionar por terrenos escorrecadios, por terras proibidas, trabalhar com conceitos que podem esbarrar nos limites da racionalidade humana, dentre eles o conceito de Deus. Tentar explicar Deus pelo viés da ciência é impossível, afinal, a demonstração empírica tem seus limites. Explicar Deus pelo viés da religião é mais tranqüilo, basta a fé, basta dizer: eu creio. Agora, por uma questão de fé, também podemos crer em qualquer coisa, até no absurdo. É quando percebemos a utilidade prática do pensar, da reflexão a partir da dúvida, inclusive sobre Deus, o inquestionável.

A filosofia de Cirne-Lima parece não ter como finalidade primeira explicar Deus, mas acaba, talvez sem intenção explícita, abalando de certa forma todas as ortodoxias, inclusive as do cristianismo. Neste trabalho apresentaremos uma síntese da tentativa de Cirne-Lima, para quem Filosofia é a Ciência do Sistema, em corrigir os Sistemas deixados pela tradição filosófica, mais especificamente o Sistema hegeliano, o último neo-platônico como o próprio Cirne proclama, sem a pretensão de julgar a existência de Deus, mas que acaba colocando o conceito tradicional de Deus sob certa suspeita, ou no mínimo, passível de certas mutações.

Esta investida de Cirne-Lima numa revisão dos grandes Sistemas, sob um olhar moderno, nos parece extremamente apropriada, visto que os últimos grandes cientistas parecem transitar pelo modelo neo-platônico sem se darem conta. Assim, a tarefa de Cirne-Lima encontra eco como base fundamentadora para as novas ciências, em especial a Biologia.

Muito do que aqui registramos é fruto das aulas quase particulares que tivemos com Cirne. Uma graça para os colegas mais cristãos e uma honra para os menos assumidos. Durante um semestre do mestrado de filosofia, tivemos a oportunidade de formar um grupo riquíssimo em curiosidade e disposto a apresentar os devidos questionamentos a nova proposta do mestre.

O objetivo principal deste trabalho não é validar ou invalidar as correções de Cirne, nem provar a existência deste ou daquele Deus, mas, como ele próprio indica, aproximar a Grande Filosofia (a Metafísica dos antigos) das teorias da evolução e de sistemas hoje vigentes, já que a Ciência Maior, a Filosofia, não pode estar separada das ciências menores. Este trabalho serve também para expor as discussões que se desdobraram no âmbito da academia, restritas a um pequeno e privilegiado grupo de mestrandos, podendo, assim, se constituir num texto auxiliar que contribua para a compreensão das idéias inovadoras do pensador. Não é assim que os principiantes demonstram evoluírem para o grau de iniciados?

Duas visões de Mundo – Dois Deuses

Ao longo da história do pensamento ocidental assistimos uma disputa sobre a compreensão do mundo. De um lado uma visão chamada monista e de outro dualista. Uma disputa entre dialéticos e analíticos. Heráclito, Platão, Plotino, Santo Agostinho, Scotus Eriúgena, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Spinoza, Schelling, Hegel, Theillard de Chardin são alguns filósofos que representam a visão monista. Junto deles temos cientistas como Darwin, Bertalanffy, Hawking, Lee Smolen, Erwin Lawslo, Prigogine. Todos podem ser considerados neoplatônicos. Na outra tradição filosófica encontramos Parmênides, Aristóteles, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Descartes, Kant, Wittgenstein, acompanhados por Galileu, Copérnico, Newton e Einstein, são os neoaristotélicos.

Os monistas pensam o Mundo como uma grande unidade, um único princípio, uma totalidade não estática, mas que está em constante movimento, tem necessidade e contingência. Para os dualistas existem, dois princípios irredutíveis, dois mundos separados, um imanente e um transcendente. Um no qual estamos dentro e outro do qual estamos fora, pelo menos enquanto seres humanos, que vivemos sob condições terrenas e não celestiais. Esta dualidade tem origem platônica, do primeiro Platão, anterior a sua obra Parmênides. O mundo daqui, como mundo da sensação, imperfeito, e o mundo de lá, como o mundo das Idéias, perfeito. O primeiro determinado pelo segundo, no qual está escrito o seu destino. O primeiro como cópia do segundo, mas ambos separados. Esta concepção fundamenta o cristianismo que nos acompanha até os dias de hoje.

Quando falamos de monismo e dualismo estamos falando de duas visões do mundo. Uma forma de visualizarmos as distinções entre ambas é perguntarmos: Por que existe algo (o homem, a terra, o universo) e não só o nada? Ou ainda: Qual a razão por que algo existe, podendo não existir? Esta pergunta parte do pressuposto que algo existe, nem que seja pura ilusão sensorial, mas não exclui a possibilidade do nada (não-ser, não existir) estar presente em determinados contextos, compartilhando sua existência com alguma coisa, com algo. Ao fazer esta pergunta estamos mexendo no núcleo duro da filosofia, numa questão que coloca frente à frente necessidade e contingência, determinação e indeterminação, ou melhor, como observa Eduardo Luft, subdeterminação. Subdeterminação pelo fato de que a indeterminação num mundo não dual não é indeterminação pura. Aproveitando o que Heráclito diz: “a indeterminação é uma determinação”. Pode representar uma novidade mas houveram causas determinadas que a geraram. Usa-se o sub no sentido de tornar a linguagem mais próxima da realidade, para distinguir da determinação mais forte, da determinação primeira que é a identidade. A subdeterminação é a contingência que se opõe à identidade, mas não a elimina e sim engendra uma identidade nova. Nesta forma de pensar sistemicamente e, portanto, dialeticamente, a identidade e a contingência se determinam mutuamente. Ou o mundo é pensado monisticamente, como um grande sistema, com subsistemas reunidos dentro dele, ou se pensa o mundo dualisticamente, como mais de um sistema separado um do outro.

Se tomarmos como ponto de partida o princípio da causalidade, que diz que todo o efeito tem uma causa e nesta causa está pré-determinado o efeito, teremos uma teia de nexos causais necessários e cairemos no necessitarismo. O problema do necessitarismo é que compromete a contingência, a espontaneidade, a casualidade e junto a liberdade e a responsabilidade, ou seja, traz sérios problemas no contexto da Ética, da Moral, do Direito e da Justiça.

Num primeiro momento o princípio de causalidade leva-nos a pensar que a causa é externa ao efeito. Agora, não seria possível pensarmos que a causa pode ser interna ao efeito? Ao em vez de um elemento, ou uma substância, ter sido gerada por uma outra substância externa a ela, podemos pensar que uma mesma substância causou a si própria, sem ser determinada por algo exterior. Podemos usar a física para exemplificar. O primeiro átomo (aquele do Big-Bang), foi causado por si mesmo, já continha a potência da multiplicidade que gerou outros átomos. Talvez a física não seja o melhor campo para exemplificar, então podemos ir para a Biologia, a autopoiese do Maturana. Estamos falando de Causa Sui, de auto-causação, de um efeito que o próprio efeito se causou, de um efeito que tem em si a própria causa. Aí estamos falando de auto-determinação, de autonomia, e, em tese, estamos salvando a liberdade e todas as conseqüências que daí decorrem. Todavia, teremos abalado todas as certezas do mundo, inclusive a certeza de Deus, pois não mais é necessária a existência de um Deus Todo Poderoso que é criador que vem antes de nós, que dirige e administra tudo. Em suma, no dualismo temos o comprometimento da liberdade, no monismo temos o comprometimento da certeza. Na visão dualista tem sempre um algo externo que determina, havendo sempre uma pré-determinação. É a questão do desígnio, muito usado na tradição cristã. “Deus quis assim”. “Seja o que Deus quiser”. Deus está num outro mundo e de lá determina. O problema da falta de liberdade implica no problema da falta de responsabilidade. Como não temos liberdade, pois tudo está previamente determinado, a responsabilidade não é minha, mas sim do outro que me determinou. Nesta visão não há espaço para a existência de ninguém, de nenhum eu, nem o eu transcendental de Kant. Já quando inserimos a presença da contingência, abrimos caminho para a possibilidade da liberdade, o que ocorre na visão monista. O que poderia ser necessariamente, pode não ser. O futuro depende de uma decisão minha, aqui e agora. O jogo ainda não foi jogado, está sendo jogado agora. A História não acabou.

Se partirmos do pressuposto que o mundo é, e não somente não é, podemos nos interrogar sobre como existe algo e não tão somente o nada? Primeira opção é que o algo tenha surgido do nada; segunda que o algo tenha sido criado por um outro algo que o antecedeu; terceira que o algo tenha se auto-criado. A primeira opção pode ser refutada pela premissa de que o nada não pode engendrar nada. O nada, nada cria. O nada só pode existir dentro de um contexto em que compartilha a sua (não)existência com um algo. Junto da impossibilidade do nada puro vem a impossibilidade do acaso, pois este sempre terá uma pré-determinação. A segunda opção remete a duas possibilidades: ou o algo foi criado por um algo que o antecedeu e assim sucessivamente e infinitamente, ou o algo foi criado por um algo que o antecedeu até se chegar num primeiro algo que sempre existiu. Ambas as opções se perdem no infinito, nenhuma determinação é mais possível já que o infinito é indeterminado e o indeterminado não pode determinar algo. Agora, se pensarmos numa cadeia não linear, sem início e sem fim, que não vai ao infinito, mas que se fecha em si mesmo, chegaremos a terceira opção da auto-causação. Para pensá-la ainda é imprescindível pensar que o algo está sempre em movimento e, a partir daí, nunca esteve nem estará sozinho, pois estará sempre engendrando uma oposição. Oposição aqui é o mesmo que diferença. Uma pessoa agora sentada na frente do computador, não é a mesma que se levanta para tomar um vinho. Até podemos pensar que se trata da mesma pessoa, mas não identicamente a mesma. Isso é óbvio demais se entendermos que o sempre mesmo não existe na medida em que nos movendo já não somos mais exatamente os mesmos. E assim temos junto da oposição, a determinação mútua, a contingência, a multiplicidade, o novo. No mundo que tem movimento, único mundo possível, tem o tempo, e o algo não é sempre o mesmo. Isto se torna bem mais perceptível quando observamos um ser humano que a cada instante muda, nasce, cresce, morre. Nascimento que não é o começo, pois já havia seres precedentes que o determinaram. Morte que não é o fim pois, mesmo que um determinado ser humano tenha a hereditariedade rompida, ou seja, não tenha filhos, ele se eterniza atomicamente. Como a morte das partes não é possível, o sistema como um todo não entra em colapso. O todo se eterniza na medida em que reina a multiplicidade (circularidade). As partes não morrerem totalmente, porque não são unidades separadas, as partes são relacionais, todas estão relacionadas com todas (Teoria de Sistemas), uma tem sua extensão na outra, formando uma única eterna unidade, um só mundo, uma só substância. Se uma unidade individual morre, parte dela está na outra. Mesmo o primeiro átomo, aquele que sempre existiu não tinha a possibilidade de entrar em colapso, pois nele próprio já havia outros átomos. Há a morte da individualidade, mas não da universalidade. Talvez ficasse melhor compreender pela representação espiral ao em vez do círculo. Só que no caso da representação na forma de espiral há o problema de tanto o início como o fim tendem ao infinito e aí não dá mais para pensar, não dá mais para fazer filosofia.

Quando falamos de um algo que se autocria, podemos nos referir numa totalidade de algos, ou seja, o universo. Universo como único, que engendra tudo, um sistema complexo de relações em que as partes, como se fossem nós de uma teia, estão, de algum modo, vinculados, cujo nó originário é uma única substância, um átomo original, do qual se desdobra a multiplicidade. Fora deste universo não há outros universos que o determinam, pois ele mesmo se auto-determina, é causa de si mesma, e, portanto, contingente. Temos nesta visão de mundo a visão monista.

Quando falamos de um algo que cria outro algo, um externo ao outro, podemos nos referir a duas totalidades distintas. O universo da causa e o universo do efeito, onde o efeito é determinado por uma causa que por sua vez é determinada por uma outra causa antecedente e assim até chegar numa causa incausada: primeiro motor imóvel (Deus). Causa incausada, onde tudo está pré-programado, princípio ontológico, começo de toda série de causas, não podendo ser contingente porque senão remeteria a uma outra causa anterior, portanto, necessária em sua existência. Temos uma visão dualista.

A esta primeira causa, que o cristianismo chama de Deus, que cria o mundo conhecido por nós de um ato livre, acrescenta-se (e isso é Tomaz de Aquino cristianizando Deus) a perfeição absoluta, inclusive sem limites. O pressuposto de que nenhum efeito pode ser mais perfeito que a sua causa, hoje é combatido pelos avanços da Ciência que aponta para o fenômeno da auto-causação (Ludwig von Bertalanffy), pela qual um ser vivo pode se auto-causar e se auto-organizar (sistemas autopoiéticos), como também, pode haver uma causa inferior, gerando um efeito mais complexo (Prigogine) e nisso temos a conjunção de determinação (necessidade) e indeterminação (contingência).

Dentre as dificuldades para aceitar a idéia é de que se Deus é ilimitado, então não possui nenhuma determinação, ou seja, é indeterminado. Só que não é assim que pensam os neotomistas que tentam refutar qualquer possibilidade da contingência em Deus, já que implica em sérias dificuldades para explicar e aceitar as concepções de criação, intervenção e salvação que fundamentam a existência de Deus para o cristianismo. Se Deus é contingente ele pode não ter criado, pode não intevir por nós e pode ainda não nos salvar, o que para os cristãos tradicionais (neotomistas), representa o indesejado, ou seja, a morte de Deus e a morte dos homens.

Os neotomistas ao mesmo tempo que defendem um Deus necessário, não contingente, procuram incorporar a contingência no homem para salvar a liberdade humana. Para isso dizem que Deus é pura determinação, mas os homens possuem livre arbítrio para tomar suas decisões, separando assim o mundo dos homens do mundo de Deus. Criador e criatura se separam para não comprometer o conceito dualista de Deus.

Como se pode observar o embate entre monistas e dualistas causa várias implicações na concepção de Deus. O Deus dos monistas não é o mesmo Deus dos dualistas, pelo menos no que se refere ao Deus que herdamos da cultura cristã. Deus dos monistas é a “alma do mundo”, uma espécie de energia, inserida no cosmos. Ele é o próprio universo eterno com necessidade e contingência. Segundo os panteístas monistas, como Spinoza, tudo é Deus, já para os pananteístas monistas, como Cirne Lima, Deus está em tudo. Chamá-los de ateus? Eles dirão que não. As formas de deus que monistas ou dualistas propõem não excluem deus. se o deus monista é mais contigente, não quer dizer que deixou de ser deus. talvez um deus menos perfeito, mas continua sendo deus, o problema desta forma de deus para o cristinismo é que o mal também está em deus, já que deus está em tudo. Os monistas não são ateus se pensarmos na possibilidade de um outro Deus, sem trazer para a justificação o aspecto da fé. O Deus dos monistas também pode ser chamado de energia, de alma do mundo, de algo bem menos pessoalizado do que o Deus dos dualistas, que é o Deus do cristianismo. O Deus dos monistas não cria o mundo, não intevém e não salva. Por aí podemos ver que estamos falando de um outro Deus, muitíssimo diferente. Mas não estou falando de fé. Mas se pensarmos que o único Deus possível é o Deus cristão, pai de todos, criador e salvador, certamente que os monistas tanto panteístas como pananteístas podem ter seu teísmo posto em suspeição.

A necessidade do primeiro motor, da causa incausada, desaparece na concepção de mundo dos monistas, pois o mundo pode ter sempre existido, o que invalida a criação primeira atribuída ao Deus criador, mas não invalida a existência de Deus. É possível pensar um Deus que seja a própria energia criadora que não necessariamente tenha criado o universo, mas que esteja presente nas criações do dia a dia, manifestas na vida dos homens e da natureza, sem determiná-las absolutamente.

O Deus dos monistas não é o Deus personificado das igrejas, que do céu tudo cria, governa e determina, mas é uma possibilidade (energia ou princípio), que imana e transcende ao mesmo tempo, manifestando-se na ordem que emerge do caos e na complexidade do humano. Um filósofo monista, como Cirne, pensa o Deus-Tese como um princípio importantíssimo, mas mínimo em conteúdo. Já um teólogo crê que este Deus-Tese é tão perfeito quanto possível, embora passível de ulterior perfeição (o amor, segundo Agostinho, sempre permite ulterior perfeição!). A admissão de um Deus-Tese que seja perfeito é uma hipótese que do ponto de vista científico (navalha de Ockham) não precisa e não deve ser admitida como científica. Mas se o teólogo, o crente, tiver razões que o levam a esta admissão, nada a opor. Não surge contradição ou inconsistência sistêmica. E assim se explica e fundamenta a diferença entre pensar e crer, entre o filósofo e o teólogo (sem que uma posição seja simplesmente reduzida à outra, isto é, sem que uma das posições seja eliminada). O Absoluto no sentido estrito é somente o Universo, o sistema todo com suas três partes (tese-antitese-síntese ou identidade-diferença-coerência). Num sentido filosófico mais amplo, cada parte do Todo, enquanto parte, remete para o Todo e, deste modo, remete para o Absoluto. O Absoluto brilha e aparece em cada parte, sem com ela se identificar totalmente. A parte apenas revela o Absoluto, não o expressa plenamente. O Absoluto no sentido filosófico estrito é a Totalidade em Movimento, o que inclui obviamente as três partes do sistema. Na linguagem de Agostinho, o Absoluto no sentido estrito é Deus antes de criar o mundo, mais a Natureza criada, mais o Deus-Homem, a Natureza divinizada pela graça, a Jerusalém Celeste (não há mais espaço para o inferno!…).

Para desconfigurar ainda mais a imagem de Deus dualista, os monistas também descartam o Deus salvador, comprometendo um dos grandes pilares das religiões cristãos que é a imortalidade da alma. Como não é possível para os monistas a existência de dois mundos separados, a salvação após a morte num outro mundo é impossível. Além da inexistência de dois mundos, corpo e alma para os monistas não podem ser separados, um não vive independente do outro. O ser humano como sendo uma unidade corpórea, sem separação de corpo e alma, se morre o corpo, morre a alma, pois corpo e alma são uma única unidade. Assim sendo, para os monistas, na morte perdermos nossa individualidade. Na morte nos diluímos no todo, sem conservar a nossa individualidade que se perde com a cessação do funcionamento fisiológico. Já para os dualistas, permanece vigente a promessa do “paraíso celeste”, onde se concretiza a nossa imortalidade. Como há dois mundos separados, o mundo dos homens e o mundo de Deus, a vida após a morte é viável. Há um outro mundo possível a espera da alma que permanece viva, mesmo após a morte quando se separa do corpo morto, e com ele se reconcilia no dia do juízo. Na morte a alma se liberta do corpo para ir ao encontro de Deus nos céus da divindade. Para os dualistas, corpo e alma não são faces de uma mesma moeda.

Para Cirne Lima, o dualismo apresenta problemas insolúveis na medida em que separa princípios irredutíveis, que não se falam e se afastam do unívoco. Uma das causas é a dificuldade para apresentar as devidas explicações para sua concepção dentro de uma linha de racionalidade que não evoque apenas crença ou imposição dogmática. Por exemplo: como explicar que a alma possa viver sem o corpo? Como explicar a existência de dois mundos, dos homens e de Deus? O primeiro até que os dualistas explicam, mas o segundo é remetido para uma questão de fé e, daí, não se trata mais de filosofia.

Para Cirne, a verdadeira, ou a mais coerente, explicação do mundo está na idéia monista, do Platão do Parmênides e dos neo-platonistas, com as devidas correções, as quais se atreve a fazer, tentando corrigir os problemas deixados principalmente por aquele que considera o último dos filósofos neo-platônicos, Hegel.

A Identidade Dialética

O neoplatonismo hegeliano está exposto à duas grandes objeções. A primeira delas é a acusação de negar o princípio de não contradição e a segunda é que Hegel defende o necessitarismo, comprometendo qualquer possibilidade de liberdade.

Cirne Lima busca corrigir ambas objeções demonstrando que Hegel não está falando de contradição em seu sistema, mas de contrariedade e, por conseqüência, não nega o princípio de não contradição nem é necessitário. Seguindo o quadrado lógico, a regra da contraditoriedade diz que se um é verdadeiro o outro é falso e vice-versa, em ambos os sentidos. Na contrariedade, se A é verdadeiro, E é falso, agora pode ocorrer que A seja falso e E seja falso também, ou seja, ambos podem ser falsos, mas não podem ser ambos verdadeiros. Não se trata do não-ser ser menor do que o ser. não se trata de desvaloração do não-ser. Isso se seria usar um critério moral. O não-ser sempre será negação de algo, precisa de algo para existir. A negação sozinha é o nada e o nada puro não existe. O nada engendra nada. E daí o mundo nem seria. Em termos lógicos não se trata de um demérito do não-ser. Dois não-seres não geram problema algum, agora dois seres que dizem a mesma coisa, sobre o mesmo aspecto, ao mesmo tempo, se anulem. E isso é problema, pois temos uma contradição. Já a falsidade de ambos os opostos em se tratando de contraditórios não é possível. Numa contrariedade, se a proposição “todos os gaúchos são brasileiros” é falsa, porque alguns gaúchos podem ser argentinos e uruguaios (nenhum brasileiro é argentino), a proposição contrária, ou seja, “nenhum gaúcho é brasileiro”, pode ser tanto falsa como verdadeira. Falsa porque se só alguns e não todos os gaúchos são argentinos, sendo alguns brasileiros, não é possível dizer que nenhum gaúcho é brasileiro. Verdadeira porque se é falso que todos os gaúchos são brasileiros é possível que todos os gaúchos sejam argentinos e, por conseqüência, nenhum gaúcho seja brasileiro. Agora se estivermos falando de contradição, ou seja, para a proposição “todos os gaúchos são brasileiros”, ao em vez de “nenhum gaúcho é brasileiro” tivermos “alguns gaúchos não são brasileiros”, ambas não poderão ser falsas, uma das proposições necessariamente deverá ser verdadeira. Se “nenhum gaúcho é brasileiro” for uma proposição falsa, a proposição contraditória, “alguns gaúchos não são brasileiros” será determinada necessariamente a ser verdadeira, não havendo assim espaço para a contingência. Assim, Cirne Lima demonstra haver contingência em Hegel e, portanto, defendê-lo diante da segunda objeção de que a filosofia hegeliana é necessitaria, como também responde à primeira objeção, demonstrando que Hegel não nega o princípio de contradição, pois na verdade o que Hegel quer dizer quando fala em contradição é contrariedade, onde a identidade tem oposição, determinação e diferença.

Em Platão há um primeiro ser que é o Uno, onde Tudo está contido. Dentro do Uno se desdobram dois pólos opostos que se determinam mutuamente. É o jogo dos opostos, a enantia platônica, a relação de dois conceitos que se constituem mutuamente a partir de uma oposição. Não entendemos um pólo sem conhecermos o outro. É assim com o quente e o frio, o alto e o baixo, o belo e o feio. Neste jogo de opostos temos o engendramento da multiplicidade, a dialética que muitos físicos e, especialmente, biólogos, aplicam em suas teorias sem reconhecê-la literalmente. Na Teoria do Caos, o caos dentro de si mesmo engendra variações sem levar o sistema a um caos total, muito pelo contrário, engendra uma ordem em oposição e diferenciação ao caos.

Toda identidade pressupõe uma oposição, uma determinação mútua e uma diferença, não havendo assim uma identidade plena, pelo menos no contexto da existência. Se A se opõe à B, ou A elimina B, ou B elimina A, ou, então, A e B se mostram compatíveis e entram em coerência, surgindo um elemento novo, um C, ou um D, ou um F, enfim, um outro que forma novos pares de opostos, que se mantém integrados ao sistema de relações. Sistema que é a própria totalidade, a substância única citada por Spinoza, formada a partir das relações do que consideramos coisas, mas não passam de configurações de relações que, por serem mais ou menos estáveis, aparentam ser coisas. Assim, tudo é relativo, com exceção do fato de que tudo seja relativo. Absoluto é somente e tão somente o fato de que tudo é relativo. Como dizia Heráclito: “tudo muda exceto a mudança”. E como o Universo é movimento, mudança, o Universo, o todo, é absoluto.

Para leitores desprovidos de uma maior atenção, Cirne-Lima pode ser confundido como quem se diz monista mas, ao mesmo tempo, opera com uma dualidade dentro de sua teoria, na medida em que fala do mundo dos possíveis e do mundo dos existentes. Para Cirne estes dois mundos, que são representados pela lógica e pela natureza, estão num só mundo, no único mundo possível, o mundo da totalidade em movimento. Mundos que estão continuamente imbricados. A lógica não se naturaliza, o que não significa dizer que a natureza não tenha lógica. Tem sim, a ponto de criar uma linguagem.

Para ilustrar a visão de mundo monista, da moeda que tem dois lados indivisíveis, poderíamos recorrer a um círculo recheado de outros círculos apesar de ser uma ilustração fraca, pois não consegue ser fiel ao seu pensamento. O problema principal é que o círculo não representa bem uma evolução, pelo contrário aparenta não evolução. Se escolhermos um determinado ponto num circulo, partindo dele retornaremos ao mesmo ponto, ao mesmo lugar de onde partimos. Com isso, parece não termos evoluído no tempo e parece não ter havido movimento. É como se tivéssemos ficado parados no mesmo lugar, o que foge da representação da idéia monista. Outra tentativa de representar seria uma espiral que, por sua vez, demonstra a evolução, mas tem o problema do ponto inicial, do ponto de partida que na teoria monista não deve existir, pois não há um ponto inicial nem um ponto final, pois estas determinações impedem a contingência. Precisa haver uma “eternidade em movimento”.

A concepção de universo na linha de pensamento de Cirne sugeriria um círculo, atemporal, eterno (sem início e sem fim) e sem contingência onde se situaria a lógica, a matemática e tudo que denominamos de apriori. Similar ao “eterno momento presente” de Hegel e a “eternidade em movimento” de Agostinho. Dentro deste círculo existem estruturas lineares e curvilíneas, temporais, com início e fim em pontos da circularidade. Estas estruturas representariam a vida individual dos seres vivos que são sistemas auto-organizados e, portanto, fechados no ponto de vista organizacional e abertos no ponto de vista energético e informacional. Energia que não vem de fora do círculo, pois aqui nada está fora, no que, em termos da representação, reside um problema. O problema a que o círculo nos incita pensar é a existência de um fora do círculo, ou seja, o mundo de dentro e o mundo de fora. Está separação tornaria dualista a teoria monista e, portanto, a representação como foi descrita anteriormente estaria incompatível com a realidade que desejávamos representar.

Buscando ilustrar a idéia monista da identidade dialética, poderíamos usar um exemplo pragmático o sorteio que antecede o início de um jogo de futebol. O momento (1) em que a moeda está na palma da mão do juiz, com um dos lados voltados para cima, é a fase necessária sem contingência. O momento (2) em que a moeda está no ar, tendo os dois lados com iguais probabilidades de terem a face virada para cima, quando a moeda encontrar o chão, corresponde a fase da contingência. O momento (3), quando a moeda no chão tem um dos lados voltados para cima, é a fase novamente da necessidade, mas não exatamente com o mesmo conteúdo, a mesma necessidade do momento (1), pois a face pode não ser a mesma.

Mas se ainda não há uma representação gráfica possível, há a possibilidade de cientificamente obter demonstrações de pertinência da Identidade Dialética, através da teoria da evolução das espécies de Darwin e da teoria de sistemas de Bertalanffy.

Conclusão

Muito distante de uma conclusão, nos reservamos a apresentar algumas considerações sobre nossa compreensão a respeito das mais recentes investidas de Cirne Lima, sobre a tentativa de explicar o mundo a partir de uma perspectiva neoplatônica, com as devidas e imprescindíveis correções de Hegel.

Demonstrar que Hegel não trabalha com contraditórios, mas com contrários, num primeiro momento pode parecer apenas um detalhe, sem grandes conseqüências. Todavia, numa análise mais profunda nos deparamos com uma diferenciação que causa sérias mudanças na interpretação do pensador. Estamos falando da abertura do sistema, no qual antes desta correção tudo era necessário, sem contingência, sem multiplicidade e sem liberdade.

A História não está mais determinada. O que está determinado no presente momento é a história do passado, mas a história do futuro não. Esta está totalmente aberta. O passado é necessário, o futuro não. O futuro é necessário quando se concretiza e, aí, não é mais futuro, é presente existente. Num sorteio, a moeda quando atirada para cima, enquanto está no ar tem um futuro contingente. Seus dois lados têm igual probabilidade de serem vencedores, de se concretizarem e não concretizarem. Após cair no chão a definição do lado torna a decisão necessária. O futuro se concretiza e não é mais contingente e, também, não é mais futuro é presente. Pronto para um novo jogo e, quem, sabe um novo resultado. A casualidade age durante o processo. Enquanto a moeda estava no ar tínhamos o jogo da efetividade e da possibilidade com a presença da contingência, do acaso.

É este acaso, presente fortemente também nas teorias de Darwin, Bertalanffy, Prigogine e Lee Smolin que por uma questão de coerência levará Cirne e outros monistas a pensarem um outro Deus. Um Deus que se distancia do Deus determinista. Um Deus não mais tão onipotente, pois assim como pode também não pode. O que não significa dizer que este outro Deus represente mais garantias de eternidade (ou imortalidade). Muito pelo contrário este outro Deus acaba com as garantias. Assim, se por um lado, a liberdade está salva, por outro, o mundo das certezas morre com a correção feita por Cirne Lima. Agora, no campo da filosofia prática, ou seja, da ética e da política, cabe saber, o que fazer com toda esta liberdade. Uma dialética humanista é possível?

Bibliografia

Capra, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2002.

Cirne-Lima, Carlos. Dialética para Principiantes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

Darwin, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo: Martin Claret, 2005.

Hegel. Os Pensadores. São Paulo: Nova cultural, 2000.

Lawslo, Ervin. Conexão Cósmica, Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

Luft, Eduardo. O Princípio da Coerência, Rio de Janeiro: Editora Brasileira, 2005.

Prigogine, Ilya. O Fim das Certezas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

Smolin, Lee. A Vida do Cosmos. São Leopoldo: UNISINOS, 2004.

O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO DE FILOSOFIA

SISTEMAS ÉTICOS – PROF. MÁRCIA TIBURI

O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO

MARCOS KAYSER

São Leopoldo, dezembro de 2005.

O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO

1. Breve síntese do mundo como vontade e representação:

Na obra “Mundo Como Vontade e Representação”, Schopenhauer mostra sua metafísica na qual o espaço e o tempo é governado pelo princípio de razão suficiente; a Vontade é apresentada como a coisa-em si ; e o corpo é o objeto imediato da vontade. Podemos situar Schopenhauer entre o idealismo e o materialismo, no qual o real constitui a representação do mundo externo.

O Mundo como representação se divide em duas metades inseparáveis; o sujeito e o objeto. Nenhum dos dois pode existir nem mesmo pensar-se em si, isto é, independente um do outro. Ser sujeito é formar e ter representações; ser objeto é ser conteúdo de uma representação. Um erro básico para Schopenhauer, portanto, seria aplicar a causalidade a esse eixo sujeito/objeto. A causalidade, como todas as relações e determinações que podemos pensar, vale unicamente para aquilo que foi pensado e, na base de todas essas relações se compreende as formas comum desse “ser objeto.” As formas próprias são como em Kant as formas do espaço e tempo. No pensamento de Schopenhauer, todas as demais funções do pensar são substituídas em favor da causalidade. Schopenhauer desenvolve a distinção kantiana entre o númeno e o fenômeno, mas, por outro lado, situa-se numa posição diferenciada em termos de perspectiva. Em Kant, o fenômeno é a única realidade cognoscível para o sujeito e o númeno (realidade transcendente), é o limite do conhecimento humano. Com o interesse em desenvolver e integrar o pensamento de Kant, Schopenhauer acaba por se distanciar dele. Para Schopenhauer, o fenômeno é pura representação, ilusão (o “véu de Maya”deque fala a filosodia indiana e budista). Por outro lado, tanto para Schopenhauer como  para Kant o mundo que conhecemos é o mundo dos fenômenos. O nosso conhecimento é a nossa representação do mundo, pois o objeto conhecido é o objeto como o sujeito apresenta-o a si através de formas subjetivas.

A intuição para Schopenhauer é tida aqui como a fonte única de toda experiência e por conseqüência fonte também de todo o conhecimento. É um erro querer encontrar nos conceitos ou em uma ciência feita de conceitos, algo mais que a expressão abstrata onde encerram nossas intuições, além disso, os filósofos que precederam a Schopenhauer, especialmente Kant, estavam errados querendo alcançar por meio de uma “pretensa intuição intelectual” o conhecimento conceitual que nos conduziria para além do conteúdo da experiência. O caminho que leva ao conhecimento da coisa-em-si não pode se dar por meio da representação. Sob este ponto de vista, dado que o espaço, tempo e causalidade não são mais que formas da nossa representação, elas não podem conter em si a essência do real; esta deve estar fora dessas formas.
Posto que toda multiplicidade só pode ser pensada no tempo e no espaço, a multiplicidade não será senão uma peculiaridade do mundo da experiênica, e o ente real haverá de constituir uma unidade sem diferenças, livre de toda multiplicidade. Sem o espaço e o tempo não se dá nenhuma existência individual; eles são como diriam os escolásticos o principium individuationis. A utilização deste princípio não pode ser confundida, contudo, com uma conclusão epistemológica, mas sim, Metafísica e Ontológica do pensamento de Schopenhauer.

Dentro da experiência possível, observa-se também um grupo de fatos que nos abrem um caminho totalmente singular para o conhecimento da coisa-em–si . O sujeito com sua capacidade cognitiva se re-conhece não só como sujeito de suas representações  mas, também, como sujeito do seu querer. A identidade de ambos os sujeitos resulta tão inexplicável  como a identidade do mundo dos fenômenos em geral. De qualquer forma, isto é certo, a vontade, tal como se manifesta imediatamente em nossa consciência, está livre da forma da intuição a que chamamos de espaço e, embora ela esteja sujeita a forma temporal, ela está mais próxima da  essência, da coisa-em-si, que qualquer outro fenômeno externo que se apresentam à nossa consciência. A vontade é, portanto, entendida como  a realidade que sustenta o mundo das representações. Dizer isso é o mesmo que dizer ser possível a explicação dos fatos da experiência externa dos objetos em analogia com nossa experiência interna que possui como conteúdo a vida volitiva.

A vontade está por toda parte. Ela é como que uma raiz, um princípio primeiro do mundo que move o agir humano. Em todos os fenômenos da natureza, da vida dos astros, ao instinto dos animais e mesmo no querer consciente dos homens lá a encontramos a manifestação dessa vontade. Não somos tão livres quanto pensamos, pois, tudo o que acontece, acontece segundo a necessidade. O corpo objetiva a vontade enquanto impulso, infinito, uno e irracional e independe de qualquer individuação. Todo ato real da vontade do sujeito é o movimento de seu corpo o corpo é apenas a vontade tornada visível, é a própria vontade enquanto objeto da intuição. Assim, toda impressão exercida sobre o corpo afeta imediatamente a vontade, onde aparece, então, o prazer e a dor.

Schopenhauer teve suas idéias profundamente influenciadas pela tradição hindu dos Upanishads e pelo budismo. Schopenhauer foi o primeiro filósofo europeu que assumiu publicamente o ateísmo, entretanto, ele admirou no budismo e no próprio cristianismo seu lado ascético. Retirando-se os dogmas estas  religiões  tem como seu  fundamento a abolição da vontade.

A filosofia de Schopenhauer reflete, em seu conteúdo, que na vida humana as dores superam os prazeres e a felicidade é inalcançável. A vida humana é má. O mundo, em sua totalidade  é uma manifestação de força irracional como “vontade de vida”. Ele foi o primeiro europeu a falar do mundo como sofrimento, chamando o  que nos cerca visivelmente de  confusão, paixão, mal. “Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados”(“O Mundo como Vontade e Representação” Livro III Parágrafo 38 Pág. 26). Os seres humanos são as criaturas ativas que se encontram compelidos a amar, odiar, desejar e rejeitar. Os homens possuem o conhecimento de que a natureza é irredutivelmente desse modo. Nem mesmo o suicídio limita a ação da vontade, pois ele é simplesmente uma afirmação da própria vontade. Do ponto de vista positivo é a própria dor que é a essência do mundo.
Em Schopenhauer, encontramos a idéia de que não há nenhum ‘local’ de escape da vontade na natureza, as expressões dela são vistas entorno de todo mundo. Assim os movimentos animais, o desabrochar de uma semente, a força invisível do imã, refletem aquele mesmo impulso fundamental que rege tudo e a todos. A única finalidade da vida é justamente escapar da vontade partindo do apaziguamento das paixões, evitando assim a percepção dos impulsos dolorosos que impedem o alcance do que os hindus chamam de Nirvana. As artes, especialmente a música, a mais elevada das artes, têm uma função importante neste aspecto. Elas podem fornecer um céu provisório no qual se verifica um aspecto da contemplação verdadeiramente positiva. No entanto, a única saída possível para o término do sofrimento está na extinção completa da vontade. De acordo com Schopenhauer, contudo, a vontade não se  limita à uma ação voluntária de providência. Toda atividade experimentada pelo ser é incluída entre as funções fisiológicas inconscientes Esta vontade é a natureza interna de cada um que experimenta ser e pressupõe a aparência – no espaço e no tempo – do corpo. Partindo do princípio de que a vontade é uma natureza interna dos corpos como uma aparência no tempo e no espaço.
O mundo da percepção é um espetáculo de incessante mudança no qual se processa a revolução de implacáveis atividades, frutos da vontade.

Schopenhauer conclui que a realidade interna de todas as aparências materiais é a realidade final e universal de todas as coisas. A tragédia da vida surge da natureza da vontade, que incita constantemente o indivíduo para a satisfação dos seus objetivos irracionais. Assim, a vontade conduz inevitavelmente à dor, à tragédia e ao sofrimento num ciclo infinito de nascimento e morte, renascimento etc. Este ciclo de atividade da vontade só pode ser rompido finalmente numa atitude de renúncia em que a razão governa a vontade até o ponto de cessá-la.

Enquanto os filósofos das tradições anteriores à Schopenhauer buscavam em seus trabalhos render tributo à sabedoria divina, a um “arquiteto” criador de todas as coisas em sua  maior  perfeição , Schopenhauer observa o mundo em seu mistério e imperfeição generalizada. Ele chega mesmo a contrariar Leibniz entendendo que este é o pior dos mundos possíveis, e que este mundo não poderia ser mais mal sem cessar de existir. Apesar de Schopenhauer identificar a realidade fundamental do mundo como  vontade, diz ele, nós nos aproximamos da contemplação. Contemplação esta que é tarefa das artes, as quais nos fornecem o relevo provisório para a libertação miserabilidade da existência.

2.  Uma teoria do castigo em Schopenhauer:

Para Schopenhauer “a vida não admite nenhuma felicidade verdadeira”. A vida do indivíduo se resume a “esgotar uma série de grandes e pequenas infelicidades”, mesmo que cada um procure escondê-las. Aos otimistas que ignoram esta perspectiva trágica, Schopenhauer sugere levá-los aos hospitais, às prisões, entre outros palcos de dor e sofrimento explícitos. A vida se constituindo nessa absoluta tragédia, logo vem a pergunta se a decisão mais coerente não seria o suicídio. Schopenhauer responde que “o suicídio não desenlaça nada”. Só servirá para re-afirmar a supremacia da vontade. A morte é mais uma afirmação da vontade e o suicídio “é a própria imagem da nossa impotência” diante da vontade.  Resta ao homem obedecer à pura natureza, continuar preservando sua própria conservação. E no caminho da auto-conservação e preservação da espécie “há necessariamente guerra eterna entre indivíduos de todas as espécies” e o egoísmo é o princípio de toda esta guerra, segundo Schopenhauer. A vontade apegada ao corpo de quem a armazena, faz com que cada indivíduo seja o centro de tudo, capaz de “aniquilar o mundo em proveito seu”. E desse princípio que Hobbes, reconhecido por Schopenhauer, soube extrair a idéia da guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).

Ao mesmo tempo em que todos os indivíduos humanos abrigam uma índole violenta, eles “têm um dom comum, a razão.” Esta razão diferencia os homens dos animais, que estão “reduzidos a conhecer o fato isolado.” O egoísmo guiado pela razão descobre a necessidade do contrato, da lei, do Estado. Este último não com o fim último de eliminar a inclinação humana ao conflito, mas colocar certos limites que convençam o homem da necessidade da contenção. A possibilidade do castigo é o instrumento utilizado para o convencimento. A ameaça do castigo dá motivos mais fortes para o homem não atacar e reprimir sua inclinação agressiva. O cumprimento dos contratos e das leis não são motivadas por princípios morais, nem éticos, mas pela ameaça do castigo. A punição tem eficiência na contenção de uma falta ou na sua repetição, ou seja, para que a falta, a transgressão não volte a ser cometida. Desta forma o Estado não se contrapõe ao egoísmo. Muito pelo contrário, “esse egoísmo é a única razão de ser do Estado”. O que o Estado precisa evitar são as “consequências funestas do egoísmo”, que se voltariam contra o interesse dos próprios indivíduos. Hobbes, segundo Schopenhauer soube de forma exata identificar na realização do egoísmo a origem do Estado. Junto de Hobbes, Puffendorf, Feuerbach e Sêneca, são pensadores que defendem uma teoria do castigo como instrumento fundamental para policiar o homem. Schopenhauer também argumenta sobre a punição eterna. Ela não teria eficiência como meio de coerção, pois toda e qualquer punição demanda a idéia de tempo, para fixar os termos, decretar o castigo e colocá-lo em prática, sendo que a eternidade é um conceito atemporal, ou seja, fora do tempo. Então, uma eventual punição eterna não teria efeito algum.

Bibliografia:

Schopenhauer. Arthur, O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Contraponto. 2001.

A CO-IMPLICAÇÃO DESEJO E MEDO NA MECÂNICA DE CONTROLE EM THOMAS HOBBES

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO DE FILOSOFIA

FILOSOFIA  SOCIAL E POLÍTICA – PROF. CECÍLIA PIRES

A CO-IMPLICAÇÃO DESEJO E MEDO NA MECÂNICA DE CONTROLE EM THOMAS HOBBES

MARCOS KAYSER

São Leopoldo, dezembro de 2005.

A CO-IMPLICAÇÃO DESEJO E MEDO NA MECÂNICA DE CONTROLE

EM THOMAS HOBBES

1. INTRODUÇÃO

“…jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação.” (Leviatã, VI p.64)

Hobbes está dentre aqueles pensadores que causam certa aversão aos que resistem pensar o homem fora do espectro do bom e do belo. Criou-se um imaginário com tendências de enquadrar Hobbes como representante ilustre de uma filosofia perversa. Numa visão maniqueísta, uma filosofia do mal, que trata o homem como mal e perverso. A proposta deste trabalho de investigação não é perseguir indícios que possam levar Hobbes a algum tipo de julgamento, nem tão pouco construir mais uma apologia. A pretensão aqui é identificar os conceitos desejo e medo como constitutivos do homem e, por conseguinte, como componentes necessários da mecânica do poder, engenhada por Hobbes para contemplar a ascensão do homem burguês, como tão bem observa Hanna Arendt1.

Hobbes é um filósofo que pensa as condições necessárias para o homem vencer a morte e sua inexorabilidade no âmbito da política. Se a morte é um tema metafísico e se constitui num problema insolúvel, pelo menos para aqueles que a consideram contraditória frente ao desejo de infinitude, encontramos em Hobbes o alento de filosofar a morte como um problema político e, aí sim, pelo caminho da razão, a pretensão de um “final feliz”. Uma vitória da política sobre a morte. Do cidadão sobre o “homo homini lupus”.

Entendemos que as idéias de Hobbes são pertinentes aos nossos dias. Isso não significa dizer que seu sistema político, construído em outros tempos, em outro contexto, possa ser transportado na íntegra para os tempos de hoje, servindo de solução para problemas de nossa contemporaneidade. Tempo de guerras internacionais e nacionais, tempo de fragmentação de pactos, tempo de impunidades, tempo de um mercado com ares de absolutismo, fazendo às vezes de Estado, tempos em que o interesse público e privado são a mesma coisa como cita Hanna Arendt. Hobbes é atual porque muitos de seus pressupostos possibilitam pensar as exacerbações e contradições de nossa sociedade moderna. Hobbes é atual porque pensa uma concepção de homem, cujos aspectos possuem validade se aplicados ao homem do nosso tempo, marcado por um profundo desejo de poder e pelo ocultamento e disfarces do medo da morte.

Hobbes tem a preocupação de construir um sistema e, como poucos, privilegia dois conceitos fundantes do ser humano e da sociedade: desejo e medo. Hobbes, inaugurando a era moderna do pensamento, identificada como mecanicista, é um dos primeiros a procurar resolver os problemas do Estado e do cidadão, a partir de uma sistematização racionalista. Por um processo dedutivo, busca na causa da causa encontrar os componentes (“as peças”) que vão movimentar a sua “máquina política”. Partindo da “máquina desejante”, ou seja, do homem que é desejo incessante determinado por leis, Hobbes desenvolve um sistema político, que nasce de uma teoria geral do homem, de uma antropologia, de uma espécie de psicologia empírica do desejo. Desejo ilimitado, “desejo de mais e mais poder”, sem o qual o homem não seria homem.

Desse movimento primitivo, do desejo, tão essencial à existência do indivíduo e à conservação da espécie, surge à ameaça que a todos se prenuncia: a morte. O desejo que dá vida precisa ser contido, controlado e limitado, sob o risco da morte violenta, ameaça constante no estado de natureza, estado de guerra, teorizado por Hobbes, no qual o desejo insaciável conduz o homem ao conflito, num contexto de igualdade e liberdade absoluta, em que todos têm direito à tudo, inclusive invadir sobre o que é do outro.

Nesse estado de guerra, a alma gêmea do desejo é o medo. Medo da morte, eterna ameaça que, segundo Hobbes, é o mais indesejável dos males. Hobbes então, pelo exercício da razão, vai buscar compreender e dar conta destas duas paixões, necessárias e que se necessitam: o desejo e o medo. O Estado absoluto, concentrador de todos os poderes, é a instância máxima, proposta por Hobbes, para se impor, disciplinando as paixões através de uma mecânica de punição e recompensa. Mecânica de controle do poder como solução política para um problema existencial: desejar viver e estar prematuramente condenado a morrer.

Neste trabalho vamos nos debruçar mais especificamente, sobre a mecânica de punição e recompensa engenhada por Hobbes na tentativa de solucionar o que podemos chamar de uma espécie de paradoxo do desejo: o desejo, o mesmo imprescindível à vida, precisa ser contido. Como então manter no homem acesa as chamas do desejo sem que elas o consumam? Como limitar sem suprimir?  Investigaremos como Hobbes engenha um sistema capaz de afastar o maior dos males, ou seja, a morte, fazendo uso do medo como limitador do desejo.

2. O MEDO DA PUNIÇÃO

“…os homens não tem prazer na companhia dos outros, quando não existe um poder capaz de atemorizar a todos” (XIII)

A base de criação do Estado, para Hobbes, está na necessidade de limitar o desejo desenfreado dos homens, cuja natureza humana é marcada pelo incessante desejo de poder, que coloca em risco a vida no hipotético estado de natureza. A composição antropológica e psicológica do homem que ambiciona mais e mais, desconfia, teme o ataque do outro e vai ao encontro da vanglória, num ambiente de igualdade e liberdade absoluta, inerente ao estado de natureza, tem como único desdobramento possível o estado de guerra.  Ameaça da morte violenta que ultrapassa as fronteiras do teórico e se pragmatiza na experiência do conflito, historicamente registrada ao longo dos tempos, tornando o controle um processo indispensável que caberá ao Estado, segundo Hobbes, engenhar e comandar. Uma espécie de mecânica de controle de poder necessária à conservação da espécie humana que tem no medo da punição um dos constitutivos fundamentais.

O homem vê na institucionalização do Estado a saída para vencer a incômoda, indesejada e constante ameaça da morte. Forma-se o corpo político pelo acordo entre os corpos desejantes de cada indivíduo. Um acordo mediados pela vontade e pela razão. O Estado, detentor de uma soberania absoluta, o maior dos poderes, é a única instituição capaz de exercer a função repressiva do desejo2, protegendo o homem do próprio homem, do homem que é lobo do homem (“homo homini lupus”3), na medida em que não só deseja sobreviver, mas deseja prosperar, viver confortavelmente.

Na decisão pela submissão ao Estado, o indivíduo que tinha uma liberdade ilimitada no estado de natureza, permuta uma fatia desta liberdade pela esperança numa vida de paz. Na visão de Hobbes, o Estado surge como uma restrição que o homem impõe a si mesmo como forma de cessar o estado de guerra de todos contra todos. A vida só é possível a partir do controle do desejo, que se dá através da repressão do Estado:

“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto”. (Leviatã, p.141)

Todos os homens devem submeter-se ao Estado, ao soberano. Estrutura estabelecida a partir de uma relação de poder e submissão que dá sustentação ao funcionamento do Estado. De um lado temos o soberano, a quem compete  definir as leis civis e as medidas necessárias à paz e defesa dos homens. De outro lado temos os súditos, o povo submisso, cuja obrigação é obedecer às prescrições do soberano. Deve-se lembrar que, para Hobbes, tal submissão do povo em relação ao soberano resulta de uma decisão voluntária dos homens realizada no pacto.

O poder que o soberano exerce provém do pacto que os próprios homens fizeram entre si e pelo qual decidiram, para o bem de si mesmos, interesse, instituir o Estado e conceder total poder à pessoa de um homem só ou de uma assembléia, para em tudo representá-los. Nesse ato está implícita a decisão voluntária do homem que tendo nascido livre opta por criar um mecanismo que delimitará a sua liberdade natural para evitar uma guerra de todos contra todos. Essa decisão é necessária como único meio de proteger os homens contra os perigos da competição violenta. O poder que se impõe e subordinação a esse poder está alicerçada no consentimento individual de cada um e de todos os homens, ou seja, da unidade, que manifesta estar de acordo com a instituição de um único representante, o qual concentre em sua vontade a vontade de todos. O soberano exerce o seu poder mediante uma autoridade que lhe foi conferida pela unidade dos homens contratantes.

Hobbes infere a essência do Estado como uma entidade composta pela soma dos vários poderes individuais dos homens em sociedade. É aí que se dá a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade, quando o individual funda o coletivo. Passagem que não acontece como um acontecimento histórico, pois Hobbes não está falando de um natureza, que poderia ter sido vivida por nossos ancestrais, o primitivo da raça humana, o homem da caverna. Mas está se referindo ao homem frente a qualquer situação de inexistência de governo,  na qual impera a insegurança e a desordem. O representante do Estado, o soberano, no momento em que for instituído, possui poderes ilimitados e absolutos. Detém o monopólio do medo da punição. Nesta situação, os súditos têm a obrigação de tornarem suas as decisões do soberano e assim respeitá-las:

“Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens.” (Leviatã, XVIII, p145)

O descumprimento das leis criadas pelo soberano sujeitará os súditos às punições. O conhecimento da lei civil4 é de competência universal, todos devem conhecê-la, sendo que apenas o Estado pode fazê-las e ordená-las aos seus súditos, não estando sujeito a elas. Há lei que coloca o soberano na condição de único legislador, único com poder de revogar uma lei por outra lei. Há lei que isenta o soberano de se submeter à lei. Há lei pela qual um costume ou tradição, respeitada ao longo do tempo, é lei até o momento em que o soberano sair do silêncio e se manifestar contrário, podendo extinguí-la, independentemente de seu tempo de vigência. Há lei dizendo que as leis naturais e as leis civis estão contidas uma na outra e quem obedece a uma obedece à outra. Porém a liberdade natural pode e deve estar contida na lei civil, criada para limitar os avanços do desejo insaciável do homem natural. Há lei dizendo que a lei jamais pode ser contrária à razão e o que faz ser lei não é a jurisprudência, ou sabedoria dos juízes, mas a razão do Estado. Quando surgir uma contradição na lei é possível interpretar, ou seja, o que o legislador quer dizer, e eliminar a contradição. Para isso o juiz subordinado ao soberano deve levar em conta a razão que levou este último a fazer determinada lei. Está  em jogo a intenção, o desejo do soberano, pois uma lei é a manifestação da vontade de quem a ordena.

Para Hobbes a sujeição dos súditos às leis não exclui a liberdade dos homens. É justamente a obediência ao Estado e às leis que garantem a conquista da liberdade. Liberdade que para Hobbes consiste na ação livre e racional para sair daquela situação de medo e insegurança do estado de natureza, quando cada indivíduo renuncia a uma parcela de sua liberdade individual, da qual era possuidor, substituindo-a pela segurança existente no estado de sociedade. Assim, cabe ao Estado, recorrer ao recurso da pena5 para impor o cumprimento das leis pelo medo da punição.

Segundo Hobbes, apesar da coerção, as ações do homem continuam sendo próprias, não há nenhum mecanismo que conduza as suas mãos, os seus gestos para um fim determinado. A necessidade não impede a vontade e a razão de deliberar. Toda vontade ou inclinação provém mesmo de alguma causa, e esta causa culmina em uma causa primeira que é a necessidade. Fazer o que se quer está intrinsecamente acompanhado de se fazer o que Deus quer e apenas isto6. Apesar de Deus estabelecer o que se deve fazer, ele não impede o não fazer. Da mesma forma funciona com o Leviatã. Ele estabelece as condições necessárias ao comportamento prudente, mas não impede que se faça o contrário, caso isto ocorra o homem assumi por si as conseqüências da punição ou castigo, geradas tanto da desobediência para com Deus como para com o Leviatã.

Diferentemente das leis de natureza que não precisam ser escritas e podem ser resumidas no mandamento hobbesiano, “não faça aos outros o que não consideras razoável que seja feito por outrem a ti mesmo” (Leviatã XXVI, p211), as leis civis, além de escritas, precisam ser publicadas com sinais evidentes de que sejam de autoria do soberano. Para Hobbes não basta a escrita da lei e sua publicação. Ainda assim a lei requer uma interpretação, pois a natureza da lei não se encontra na letra, mas sim na intenção do legislador. As leis naturais também não se eximem de interpretação, visto que são poucos, ou nenhum, aqueles que conseguem fazer uso da razão natural sem a inferência das paixões, dentre elas o amor de si. Nos casos de erro de interpretação o soberano, que pode errar em seu julgamento da equidade, terá uma nova oportunidade para corrigir o erro anterior, quando de um novo caso semelhante tiver por julgar.

Hobbes considera o bom juiz aquele que é capaz de efetuar uma correta compreensão da lei, confiando para isso na sanidade da razão e na inclinação para uma maior introspecção; também naquele que despreza riquezas consideradas desnecessárias; naquele que se abstém do medo, do ódio, do amor e da compaixão e, por último, naquele que tem atenção e paciência para ouvir e capacidade para aplicar o que ouviu. Para Hobbes a autenticidade da lei está na interpretação do que o soberano quis dizer e isso depende de quem o soberano designou para julgar:

“…nenhuma lei escrita, quer seja expressa em poucas ou em muitas palavras, pode ser bem compreendida sem uma perfeita compreensão das causas finais para as quais a lei foi feita, e o conhecimento dessas causas finais está com o legislador.” (Leviatã XXVI, p214)

A lei perde toda a sua utilidade se apenas contemplar proibições. Para que a repressão se suceda de forma eficiente, se faz necessário o estabelecimento de castigos, que compõem uma mecânica de punição. Nas palavras de Hobbes: “se toda lei for infringida sem o justo castigo, torna-se inútil.” (Do Cidadão, XIV, p. 189). Outros dois requisitos necessários para que a lei seja eficiente é que os cidadãos conheçam, primeiro a pessoa que detém o poder de estabelecer as leis e punir e segundo o que significa o conteúdo da lei. Esta última prerrogativa exime a eventual justificativa de negligência pelo desconhecimento ou ignorância das leis. Cada um sabe o que fez e deve saber o que dita a lei sobre o que fez.

Falar de submissão, punição e castigo, pode induzir-nos à acusar Hobbes de totalitarismo, de defensor de tiranias. Para Norberto Bobbio, Hobbes foi um conservador, não um totalitário7. Para se chegar a um Estado totalitário é preciso pressupor uma totalidade ética, e o que fez Hobbes foi conceber um homem cidadão. Como cita Bobbio “o Estado hobbesiano é muito mais semelhante a uma associação do que a uma comunidade”8. Considerando, a partir da teoria de Hobbes, que o soberano possui um poder ilimitado, não podendo haver abuso de poder, característica marcante da tirania, visto que não há limites para serem ultrapassados. Contrariamente, o que pode levar os súditos ao rompimento do pacto e à desobediência é a escassez de poder. Se o soberano não cumpre com a tarefa essencial de garantir a paz, se os súditos se virem ameaçados pelo retorno do estado de natureza, eles têm o direito de rebelarem-se:

“… se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira, ou se mutile a sim mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer.” (Leviatã, XXI, p 175)

Hobbes chega a admitir que o súdito possui legitimidade para resistir, mas não nega ao soberano o direito de condenar e fazer com que a condenação seja executada. Os direitos de ambos se chocam. Um na defesa de sua vida um na defesa da vida dos cidadãos. Conforme Norberto Bobbio: “Vencerá, como no estado de natureza, o mais forte dos dois.”9

É importante ressaltar que Hobbes abre uma ínfima possibilidade de desobediência representada na rebelião, estando esta mais para uma auto defesa, ou seja, uma defesa de interesses preponderantemente individuais, do que um movimento revolucionário em nome dos interesses de uma coletividade, como por exemplo em nome de uma minoria excluída:

“Ao fundar um Estado, cada um renuncia ao direito de defender os outros, mas não de defender-se a si mesmo. Além disso, cada um se obriga a ajudar o soberano na punição de outrem, mas não na sua própria.” (Leviatã, XXVIII, p. 235)

Conforme Renato Janine, Hobbes abre uma exceção e chega a dar uma dimensão coletiva ao direito de resistência, mas totalmente destituída de especificidade. Sem um estatuto jurídico, a rebelião é um caso de polícia10, uma luta isolada entre mocinho e bandido, entre policiais e foragidos. A intenção não é a conquista do poder. Não é eleger um novo soberano. Até porque não estão estrategicamente organizados. Esta muito mais para um “defenda-se quem puder” do que um “Deus por todos e todos por um”. Muito mais do que unidos por uma causa, se juntam para tentar salvar alguns de uma execução.  É o último recurso daquele ou daqueles que tenham cometido algum crime capital, cujo decreto de morte já está lançado. Esses sim poderão se unirem em defesa uns dos outros, pois estarão defendendo a vida:

“Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado. Mas caso uma grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo quel cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e defenderem uns ao outro? Certamente que a têm: porque se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer.” (Leviatã, XXI, p. 176)

Hobbes confia muito mais no Estado de um homem só, do que no povo. No Estado hobbesiano grupos e associações, que em nossos dias corresponderiam à entidades de classes, sindicatos, associações de bairro, não apresentam poder de resistência. Hobbes vê tais grupos não como um fator estabilizador da ordem política vigente, e muito menos da Justiça, mas como elementos geradores de dissensões ou de conflitos não só entre os próprios cidadãos como também, e principalmente, entre os cidadãos e o Estado, e, por via de conseqüência, esses grupos não devem ter autonomia legal (no sentido de serem titulares de direitos de qualquer espécie) frente o Estado.  A própria família era encarada por Hobbes como uma mera instituição social arcaica, voltada basicamente a procriação e perpetuação da espécie humana e não como um dos elementos fundantes do Estado. Assim a rebelião não se traduz numa ameaça ao soberano. É uma doença que pode ser evitada. Dá margens para que da rebelião o soberano se previna com certa tranqüilidade. E, o que aqui é muito importante destacar, não impõe medo ao soberano.

No fundo Hobbes desacredita na rebelião. Não seria nada racional que os mesmos homens que fizeram uso da razão para firmar o pacto, agora não façam uso da razão na hora de descumpri-lo. A rebelião seria então um ato contrário à razão:

“Quanto à outra hipótese, de conquistar a soberania pela rebelião, é evidente que a tentativa, mesmo que seja coroada de êxito, é contrária à razão: por um lado porque não é razoável esperar que tenha êxito, antes pelo contrário; por outro lado porque ao fazê-lo se ensina aos outros a conquistar a soberania da mesma maneira. Portanto, a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza.” (Leviatã, XV, p. 125)

Para que a segurança seja garantida, Hobbes reserva, ao soberano, autonomia e poder absoluto. Pelo pacto o soberano está legitimamente impune, pois o mesmo, para exercer sua função a pleno, não pode estar sujeito a ninguém, caso contrário deixaria de ser soberano. Todavia, há um mínimo que o soberano deve assegurar. São as condições básicas para a sobrevivência dos súditos que apesar de abrirem mão parte do direito irrestrito que possuíam no estado de natureza, guardam consigo ainda direitos remanescentes:

“Como era necessário à conservação de cada homem, que ele devesse se separar de alguns de seus direitos, assim, é da mesma forma necessário para a mesma conservação que ele retenha alguns outros direitos como: direito à defesa do seu corpo, a usufruir livremente do ar, da água, e de tudo o que for necessário para a vida.” (Do Cidadão, III, pg 60)

Morte violenta não é só aquela decretada pelas armas, mas também é violência morrer à míngua, pois é viver menos que o tempo designado pela natureza. É de obrigação do soberano garantir a cada homem, além da segurança contra a morte violenta, as condições mínimas para a sobrevivência. Ar, água e alimentos, são essenciais para a vida humana. Ninguém pode ser privado de sobreviver e este direito engloba as condições materiais mínimas. Fome e miséria denunciam a incapacidade do soberano e nesse caso a desobediência está autorizada. A incompetência administrativa do soberano absolve os súditos de sua obrigação. Ao soberano não se exige qualidades morais, mas eficiência:

“Quando um homem está privado de comida, ou de outra coisa necessária à sua vida, e não pode manter-se por nenhuma outra via, a não ser por algum ato contrário à lei, então está totalmente desculpado.” (Leviathan, XXVII)

Supridas as carências que definem o mínimo, o homem tem o desejo de bens e honras. O soberano tem também o compromisso com a prosperidade dos súditos. O Estado tem uma função econômica e social11. O desenvolvimento econômico no âmbito interno e externo do país são meios necessários para obtenção do progresso. Hobbes inclusive trata de questões ainda hoje consideradas vitais para um país que vê no desenvolvimento econômico um caminho essencial para a conquista de uma vida confortável, passando pela reforma agrária e geração de empregos, palavras e problemas em voga também nos tempos atuais em nosso cotidiano social, político e econômico:

“Mas no que diz respeito àqueles que possuem corpos vigorosos, a questão coloca-se de outro modo: devem ser obrigados a trabalhar e, para evitar, a desculpa de que não encontram emprego, deve haver leis que encorajem toda a espécie de artes, como a navegação, a agricultura, a pesca e toda a espécie de manufatura que exige trabalho. Aumentando ainda o número de pessoas pobres mas vigorosas, devem ser removidas para regiões ainda não suficientemente habitadas, onde contudo não devem exterminar aqueles que lá encontrarem, mas obrigá-los a habitar mais perto uns dos outros e a não utilizar uma grande extensão de solo para pegar o que encontram, e sim tratar cada pequeno pedaço de terra com arte e cuidado a fim de este lhes dar o sustento na devida época.” (Leviatã, XXX, p258)

Segundo Macpherson o único modelo de sociedade que de fato preenche os requisitos de Hobbes é o modelo de sociedade de mercado possessivo12, cujos postulados não se opõe às características do Estado hobbesiano. Numa sociedade de mercado possessivo o Estado pode interferir no uso da terra, no uso da mão-de-obra, no fluxo do comércio, além de ter autonomia para prestar assistência privilegiada a um determinado segmento, com criação de subsídios. Pode ainda exigir padrões mínimos de qualidade como também coibir a prática de abuso de preços. Contudo, apesar da interferência, conforme Macpherson, o modelo de mercado possessivo é concebido pelos indivíduos. A competição se dá entre eles que não se contentando com o poder que tem, vão em busca de mais poder, como uma forma de conservar o poder atual.

Agora se a política estatal falhar, face à economia de mercado, deixando os indivíduos em situação de miséria, então estará o soberano sujeito à ameaça da destituição, o que não significa dizer que a rebelião esteja legitimada com observa Renato Janine Ribeiro:

“E o soberano, sendo responsável pelo corpo político, também o é pela vida dos súditos: fome e miséria denunciam que é incapaz em seu ofício (embora não concedam aos súditos, enquanto coletividade, o direito de depô-lo, restituem a cada miserável o direito de natureza suficiente para guerreá-lo).” (Ao Leitor Sem Medo, III, p.100)

Independentemente de ser cristão, o soberano tem a obrigação de cumprir as leis de natureza, mediante a qual está proibido de colocar em risco a vida de seus súditos. O soberano que desobedecer às leis naturais estará ameaçando, necessariamente, a auto-preservação da espécie humana, habilitando seus súditos à desobediência e, ao mesmo tempo, estará desobedecendo as leis divinas. Atendendo a primeira lei de natureza, que rege sobre a busca da paz, tanto no mundo terreno como no Reino de Deus, e o conseqüente caminho da guerra como meio de alcançá-la, fica o súdito legitimado a se defender, a guerriar. Tal situação corresponderia à violação do pacto, ao retorno ao estado de natureza, do desejo incontido, do medo generalizado, da guerra de todos contra todos:

“Que todo o homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha a esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.” (Leviatã, XIV, p. 114)

Hobbes é minimalista quando se trata de controle e punição do soberano, demonstrando uma desproporcionalidade entre a probabilidade do soberano ser punido e a do súdito. Além de reduzir as condições passíveis de punição ao soberano, Hobbes ameniza as penas contra este. O medo da punição pouco o afeta já que não se encontra na dimensão concreta. Não há outro homem, nem outro soberano para punir o rei. O soberano está sujeito apenas às punições divinas, portanto, transcendentais, quando não observar devidamente as leis naturais (leis da natureza), sendo que, para Hobbes, as leis naturais e os mandamentos divinos são a mesma coisa, competindo ao soberano fazer boas leis13:

“Aquele que, portanto, assumiu a administração do poder nesta forma de governo, pecaria contra a lei de natureza (pois colocar-se ia contra a confiança daqueles que lhe atribuíram tal poder) se não fizesse o estudo dos meios viáveis por meio de boas leis, a fim de garantir abundantemente aos súditos não apenas as coisas boas que se relacionam com a vida, como também aquelas que ampliam o seu deleite.” (Do Cidadão, XIII, 172)

Quanto aos súditos, Hobbes estabelece um poder coercitivo terreno para assegurar o cumprimento das leis, cuja violação por parte dos súditos acarretará em punição. Hobbes é bem mais incisivo com os súditos do que com o soberano em se tratando de punições. O fardo do medo para os súditos tem um peso bem superior. Além da punição divina, tem a punição terrena. A intimidação pelo medo vem da terra e vem do céu. As penas podem ser humanas e divinas. Hobbes divide as humanas em corporais, pecuniárias, a ignomínia, a prisão e o exílio. As corporais, como o nome induz, são aquelas que afetam a integridade física. São as flagelações, os ferimentos, a privação de prazeres do corpo antes da pena desfrutados. As pecuniárias são aquelas penas que consistem no confisco de quaisquer bens de domínio do infrator, incluindo dinheiro e terras. A ignomínia consiste na privação de um bem considerado honroso como insígnias, títulos e cargos. A prisão é a restrição de movimentos, privando a liberdade, seja num espaço delimitado onde as pessoas são obrigadas a trabalhar, seja num lugar onde as pessoas ficam acorrentadas. O exílio é aquela condenação que obriga o súdito a sair dos domínios do território do Estado ou de uma de suas partes.

O balizamento para considerar o súdito um infrator é dado pelas leis civis e pela Sagrada Escritura, na medida em que são desobedecidas e transgredidas. Na verdade as leis civis são criadas pelo soberano como artifício para tornar públicas as leis naturais que no estado de natureza não estavam escritas. Quanto a Sagrada Escritura, a interpretação14 é uma função do poder supremo. Assim o monstro bíblico assume na terra o poder de Deus.

Se o soberano ou os súditos forem ateus, o mecanismo de controle do desejo, tendo como pressuposto o medo da punição divina, terá um impasse por resolver. Como fazer ter efeito uma punição divina se não há crença em Deus? Os súditos ainda estão sujeitos à punição terrena. Estão na mira das penas que decorrem da quebra das leis civis. Agora sobre o soberano ateu restam apenas o receio de uma ínfima possibilidade de rebelião, da qual, como vimos, poderá ainda se defender, e a punição natural15, cujo inquisitor, o poder natural, não tem a força da concretude, indispensável para o ceticismo comum a um ateu.

Como o medo da punição terrena afeta apenas o súdito e o medo da punição divina fica comprometido e perde a eficácia quando o súdito ou o soberano são ateus,  Hobbes parece deixar o soberano excluído da mecânica de controle do poder. Sem a ameaça de medo, necessária para frear a mortífera sagacidade do desejo, aumentando a vulnerabilidade ao estado de guerra.

3. A ESPERANÇA NA RECOMPENSA

“Tudo o que é necessário à salvação está contido em duas virtudes, fé em Cristo e obediências às leis.” (Leviathan XLIII, p. 412)

A natureza humana não é conteúdo que se preenche mas desejo sempre insatisfeito. Para que a ambição se realize sem danos, além do medo para freiá-la, a esperança tem seu lugar no Estado. Em Hobbes, se de um lado temos o medo da punição como uma das engrenagens fundamentais na mecânica de controle do desejo, engenhada pelo Estado, máquina de obediência16 conforme Bobbio, por outro lado temos a engrenagem da esperança na recompensa, para compensar a repressão necessária para conter a ímpia do desejo. Afinal não só de morte vive o homem.

O Estado hobbesino, resultante do pacto entre razão e paixão, não só tem a função de garantir a paz, evitar a precipitação da morte, mas também oferecer condições para uma vida confortável e feliz. O Estado se constitui num homem artificial17, criado e programado para fins determinados entre os quais a paz e a prosperidade. Na medida em que o soberano é instituído, os homens têm o direito a todas as coisas limitados ao que prescreve a lei e ao poder do soberano, inclusive na determinação da posse de seus bens, que será regida pelas leis civis de cada Estado:

“…pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por nenhum de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade.” (Leviatã, XVIII, p148)

O soberano concentra o poder de todos o que lhe garante inclusive recorrer à força e os recursos de todos para assegurar a paz18. Uma só pessoa reúne o desejo de todas as outras. Mesmo que a escolha pelo soberano não foi unânime, uma minoria não fez a mesma escolha, ou seja, foi voto vencido na escolha de seu representante, deverá necessariamente reconhecer os atos do soberano como sendo seus, só assim os súditos poderão ter esperança de evitar a morte violenta e almejar uma vida cômoda, conforme cita Macpherson:

“É essa transferência de direitos que cria o seu dever para com o soberano. E já que esse pacto é uma contenção dos apetites, não pode ser obrigatório sem um poder para torná-lo obrigatório; daí, terem os indivíduos de transferir seus poderes naturais ao mesmo tempo que seus direitos naturais. Isso dá ao soberano autoridade absoluta e poder suficiente para brandir eficazmente essa autoridade. Somente reconhecendo essa autoridade podem os indivíduos: (a) ter esperança de evitar o perigo constante de morte violenta e todos os outros males que, de outro modo atrairiam inevitavelmente para si próprios, devido à sua – por outras causas – necessariamente destrutiva busca de poder, uns sobre os outros; e (b) ter esperança de garantir as condições para o viver cômodo que evidentemente desejam.”(Teoria do Individualismo Possessivo, p. 81)

Não basta pautar a relação do soberano com o súdito no medo da punição, como constitutivo único de uma teoria da obediência. O homem não é só medo. O medo sozinho não constrói a representação. Como cita Renato Janine Ribeiro, “o medo requer o seu gêmeo”. O homem é desejo e Hobbes, para dar continuidade ao movimento do desejo e satisfazer os desejos particulares de cada indivíduo, propõe um dever político baseado na recompensa. Se por um lado o súdito obedece pela coerção imposta pelo medo e instrumentalizada pela punição, por outro lado o súdito obedece pelo interesse em receber algo em troca de sua concessão:

“Pois só governa propriamente quem governa seus súditos com a palavra e com a promessa de recompensa àqueles que lhe obedecem, e com a ameaça de punição àqueles que não lhe obedecem.” (Leviatã, XXXI, 263)

O desejo de sobrevivência, a auto-conservação, tem efeito na passagem do estado de natureza para o estado de sociedade, mas não bastará para manter o homem numa vida civilizada. Além da garantia de uma vida segura, com o afastamento do maior dos males, a morte, perspectiva de proteção que foi determinante para o homem do estado de natureza abrir mão de parte de sua liberdade em troca da paz, o homem hobbesiano deseja comodidade:

“A comodidade da vida consiste em liberdade e riqueza. Por liberdade eu quero dizer que não existe proibição sem necessidade de alguma coisa para um homem, que seria legítimo para ele na lei de natureza; ou necessário para o bem da república, e que os homens bem intencionados possam não cair no perigo das leis, como em armadilhas, antes que sejam alertados. Diz respeito também a esta liberdade que um homem possa ter uma passagem cômoda de um lugar a outro, e não ser aprisionado ou confinado com a dificuldade de caminhos e falta de meios para transporte de coisas necessárias. Quanto à riqueza do povo, ela consiste em três coisas, a boa ordenação do tráfico, a obtenção de trabalho, e a proibição de consumo supérfluo.” (Os Elementos da Lei Natural e Política, p. 207)

As condições mínimas para conquistar riqueza são viabilizadas por meio de leis, entre as quais estão aquelas criadas para favorecer o aproveitamento produtivo da terra e da água, como também para incentivar o trabalho. São úteis também as leis que proíbem o gasto desordenado com o consumo de suprimentos e roupas, cuja limitação pode ser obtida através da cobrança de impostos que deverão incidir sobre o consumo e não sobre a riqueza:

“Podemos então questionar se os súditos deveriam contribuir para o bem público de acordo com a taxa do que recebem ou do que gastam; ou seja, se os cidadãos devem pagar tributo conforme sua riqueza, ou se devem ter seus próprios bens tributados, de maneira tal, que cada um contribua de acordo com sua despesa. Mas consideremos que, onde os tributos são cobrados conforme a riqueza, aqueles que receberam o mesmo tanto não têm iguais posses pois, enquanto um conserva o que adquiriu por ser frugal, o outro esbanja por luxúria e assim, arcam igualmente para com os encargos públicos; e se considerarmos de outra forma, que naqueles lugares onde as taxas se dão pelos bens, cada homem já paga o que é devido à república no próprio ato de gastar e consumir seus bens, sem fazer distinção do restante que depende, e que não paga conforme o que possui, mas sim conforme o benefício que obteve graças ao Estado.” (Do Cidadão, XIII, 177)

Mas se a esperança depositada na promessa de recompensa não se restringe à conquista de bens terrenos e temporais resta a perspectiva no céu19. O homem hobbesiano não se esgota em viver, busca transcender a vivência terrena. Hobbes não se contenta em apenas criar um sistema de proteção ao direito à vida terrena, mas quer também proteger o direito à vida eterna. A vida é um desejo de infinitude e a vida terrena com sua finitude não basta ao homem que quer mais e mais. Para Hobbes é um conatus que não se contenta com o que tem, quer sempre mais. Esse movimento ininterrupto do desejo20, vai da pacificação à reivindicação de mais. Se a conservação da vida é um instinto natural do homem, a vida é uma espécie de sumo bem. O apego à vida e a rejeição à morte, levam a uma extensão do desejo que consiste em querer continuar vivendo, mesmo depois da morte. Justifica-se então a esperança na vida eterna, prometida por Deus através das Sagradas Escrituras.

Os homens hobbesianos, como homens do desejo, desejam a salvação, que, para os bons cristãos consistem na entrada no Reino de Deus, de modo que alcancem a vida eterna. Para isso são necessárias duas virtudes:  “fé em Cristo e obediência às leis”21. Leis essas que são as leis de Deus (divinas), que, por sua vez, nada mais são do que as leis de natureza. Como as leis de natureza e as leis civis contêm-se reciprocamente, o soberano é o responsável pela positivação das leis de Deus:

“Tendo assim mostrado o que é necessário para a salvação, não é difícil reconciliar nossa obediência a Deus com nossa obediência ao soberano civil, que ou é cristão ou infiel. Se for cristão, permite a crença neste artigo que Jesus é o Cristo, e em todos os artigos que estão nele contidos, ou que são por evidente conseqüência dele deduzidos, o que é toda a fé necessária à salvação, E porque é um soberano, exige obediência a todas suas leis, isto é, a todas as leis civis, nas quais estão também contidas todas as leis de natureza, isto é, todas as leis de Deus, pois além das leis de natureza e das leis da Igreja, que fazem parte da lei civil (pois a Igreja que pode fazer leis é o Estado) não há nenhumas outras leis divinas, nem de acreditar nem de obedecer a Deus.” (Leviatã, XLIII, p.420)

A recompensa do céu, ou seja, a vida eterna, é uma recompensa maior do que a vida na terra, por sua dimensão infinita. Seguindo as Escrituras, para Hobbes, a vida eterna começa a partir da ressurreição do corpo que ocorre no dia do juízo final, cumprindo-se assim a promessa contida na segunda epístola de Pedro (capítulo 3, versículo 7). Da mesma forma que a recompensa divina a punição divina, que se dá por meio dos tormentos eternos, é um castigo superior às punições terrenas, na medida que interrompe de uma vez por todas o progresso contínuo do desejo. Apesar de Hobbes fazer um abrandamento da punição divina. Para ele o inferno é apenas o lugar de uma segunda e definitiva morte. Não há um castigo, nem uma tortura eterna para os condenados:

“…os textos que mencionam fogo eterno, tormentos esternos, ou o verme que nunca morre, não contradizem a doutrina de uma segunda e eterna morte, no sentido próprio e natural da palavra morte. O fogo, ou tormentos preparados para os maus em Gehena, Tophet, ou em qualquer outro texto, podem continuar para sempre; e nunca faltarão homens maus para serem neles atormentados, muito embora nem todos nem ninguém eternamente. Pois sendo os maus deixados no estado de ressurreição viver como o fizeram, casar-se, e serem dados em casamento, e ter corpos grosseiros e corruptíveis, como agora toda a humanidade tem; e conseqüentemente podem gerar perpetuamente, depois da ressurreição, como o fazim antes, pois não há nenhum trecho das Escrituras que diga o contrário.” (Leviatã, XLIV, p. 437)

Seremos todos ressuscitados para o Juízo Final e, aí sim, os justos receberão a vida eterna. Após a morte, o homem, até o dia da ressurreição, continuará morto durante este tempo sem percebê-lo, já que para os mortos a dimensão de tempo se desfaz. Para os homens de fé e obediência será reservado uma vida onde impera a retidão. Estará salvo de todos os males e calamidades determinadas pelo pecado a partir de Adão, e estará isento da morte e da miséria. Hobbes cita Isaías para explicar o estado de salvação:

“Olha para Sião, a cidade e de nossas solenidades; teus olhos verão Jerusalém, uma morada tranqüila, um tabernáculo que não deverá ser derrubado; nem uma só de suas estacas deve ser retirada, nem uma só de suas cordas deve ser rompida. Mas ali o glorioso Senhor porá ante nós um lugar de amplos rios e correntes, onde não irá galera com remos, e onde não passará galante navio. Porque o Senhor é nosso juiz, o Senhor é nosso legislador, o Senhor é nosso rei, e ele nos salvará. Tuas cordas afrouxaram; elas não podem segurar bem o mastro; elas não podem esticar a vela; então se dividirá a presa de um grande despojo; os fracos tomam a presa. E o habitante não dirá que está enfermo; ao povo que lá morará será perdoada sua iniqüidade.” (Leviatã, XXXVIII, 333)

Mesmo incorporando a punição divina e a recompensa divina, com base nas Escrituras, em sua mecânica de poder, Hobbes chega ser acusado de ateu. Na época o ateísmo era entendido como uma postura cética que negava a imortalidade da alma, a existência do Céu e do Inferno. A acusação era muito mais política do que religiosa. Era uma estratégia de defesa da instituição clerical que pela teoria de Hobbes estaria subordinada ao Estado. Conforme Renato Janine Ribeiro, a doutrina hobbesiana não é de um ateu, mas de um deísta22.  Facilitando a salvação, Hobbes dá valor à recompensa, abrindo caminho para a manutenção do desejo. Com isso consegue conter sem suprimir. O medo tendo como contrapeso a esperança Hobbes de fato parece ser cético diante dos tormentos eternos, mas não dispensa a obediência das leis divinas e a fé, nem desfaz a promessa da vida eterna. A fé supre nossa  incapacidade de sermos justos. A fé é ajutório porque atenua as nossas culpas, já que por Adão até o justo está em pecado.  :

“Tudo o que é necessário à salvação está contido em duas virtudes, fé em Cristo e obediências às leis. As últimas delas, se fosse perfeita, seria suficiente para nós. Mas porque somos todos culpados de desobediência à lei de Deus, não apenas originalmente em Adão, mas também atualmente por nossas próprias transgressões, exige-se agora não só a obediência para o resto da nossa vida, mas também uma remissão dos pecados dos tempos passados, remissão essa que é a recompensa de nossa fé em Cristo. Que nada mais se exige necessariamente para a salvação é algo que fica evidente pelo seguinte, que o reino de Deus só está fechado aos pecadores, isto é, aos desobedientes ou transgressores da lei, e não àqueles que se arrependem e crêem em todos os artigos da fé cristã necessários à salvação.” (Leviathan XLIII, p. 412)

Hobbes procura ser sutil na tentativa de eliminar uma dificuldade que é a necessidade simultânea de obedecer ao deus mortal, o homem soberano, e ao Deus imortal, o  próprio Deus. A voz de Deus se dá aqui na terra por intermédio do soberano, através do qual, Deus ordena tudo e à todos. O soberano é quem promulga e proclama as leis de Deus ou leis divinas. Estas leis são as mesmas leis de natureza, acrescidas da honra e do culto da divina majestade. Os que não acreditam no poder de Deus, que não possuem esperança Nele, devem ser compreendidos como seus inimigos. Por conseguinte não merecem a recompensa divina e ficarão a mercê das punições naturais. Como as leis de natureza feitas por Deus determinam obediência ao Estado, Hobbes legitima o poder do Estado a partir da transferência do poder divino ao soberano. Assim estes dois poderes não se contradizem, nem se diferenciam, mas se unificam. Igreja se converte em instituição do Estado e ambos passam ser a mesma coisa:

“Está, portanto, obrigado aquele que tem o poder supremo na Cidade enquanto cristão, quando houver questão sobre os mistérios da fé a fazer interpretar as Sagradas Escrituras por intermédio de eclesiásticos legitimamente ordenados. E, assim, na Cidade cristã, o julgamento tanto das coisas espirituais como das materiais compete à autoridade civil. E o homem ou conselho que detém o supremo poder é chefe da Cidade e chefe da igreja, pois igreja e Cidade cristã é uma coisa só.” (Do Cidadão XVII, p269)

Se no quesito medo da punição, o soberano hobbesiano tem sua coerção restrita à ameaça da punição divina, no quesito esperança na recompensa, o soberano está sujeito apenas à recompensa divina. E quanto à recompensa divina entendemos ser de pouca eficiência, seja quando aplicada ao soberano como também quando aplicada ao súdito. o mesmo entendemos quanto à recompensa divina, . Tanto punição como recompensa, no que tange ao soberano, ambas E da mesma forma que entendemos ser frágil apenas a punição divina, como condição coercitiva para o soberano cumprir com seus deveres, entendemos ser fraca a recompensa divina prometida para desfrute apenas depois da ressurreição. Na medida que a punição (o preço) é mínima para o soberano, devido ao seu distanciamento no espaço e no tempo, a recompensa também é escassa. Como conseqüência o conteúdo fraco da punição e da recompensa deixa o súdito propenso à transgressão, à beira da rebelião e o retorno nada confortável e seguro da guerra de todos contra todos.

4. CONCLUSÃO

“… não ter nenhum desejo é o mesmo que estar morto… (Leviatã, p. 74)

Em Hobbes o desejo e o medo são deduzidos da experiência empírica do viver. Mesmo que o estado de natureza seja uma abstração, ele expõe a natureza agressiva do homem, do homo homini lupus. Num contexto de liberdade total e igualdade entre todos o homem é o lobo do homem. O desejo e o medo pré-dispõem o homem ao conflito. O desejo determina o homem e o medo é seu gêmeo23. Sem o desejo o homem não tem vida. Cessar o desejo seria a própria morte. Desejar o que significa mover-se em direção a posse de poder e mais poder, como uma determinação natural de toda espécie humana, leva o homem a invadir sobre o que é do outro sempre por interesse, seja por impulso, seja por estratégia preventiva. E, como se não bastasse, se acrescenta o medo da ação invasora do outro sobre o que é seu. Invade por desejo de poder e invade por medo de perder. Ataque para conquistar e para prevenir.

Hobbes parte de um homem cru, determinado por um desejo primitivo e insaciável que, num contexto de absoluta liberdade e igualdade, denominado estado de natureza, está condenado à morte violenta e prematura. Todavia, o homem que deseja e teme não está destituído da racionalidade, sabe fazer uso da razão como instrumento que, associada à vontade própria, decide pela superação do maior dos males: a morte. A outra face do medo faz então o homem hobbesiano ressurgir das cinzas, firmando um pacto de união a fim de instaurar o Estado.

A saída apresentada por Hobbes é a instauração de um Estado soberano, suficientemente poderoso para garantir a paz, através de uma mecânica de poder, fundamentada no controle que se dá pela ameaça da punição e pela promessa da recompensa. Na punição prepondera o medo, na recompensa o desejo e a esperança. No Estado absoluto, instrumentalizado por leis para disciplinarem as paixões,  temos a representação da vontade dos homens: a paz

Num Estado em que um homem ou uma assembléia de homens concentra todo o poder necessário para fazer cumprir a lei, tudo aponta para o comedimento, para a obediência dos súditos ao soberano. Tanto é assim que Hobbes dá pouca margem à rebelião, confiando na fidelidade mútua (entre súdito e soberano). Todavia, Hobbes não conta com a possibilidade do poder absoluto negligenciar. Não conta que o homem que governa tem desejos insaciáveis. Deixa o soberano a mercê do próprio desejo, sem limites, sujeito à insaciabilidade e ao auto-interesse. Seguindo os pressupostos de Hobbes, os elementos que formam sua mecânica de controle, a coerção e a premiação, quando aplicados a quem detém a soberania não são suficientemente fortes para policiar a polícia. Sobre o soberano não há controle, pelo menos na mesma intensidade do controle imposto aos súditos. A mecânica de controle quando aplicada ao soberano é fraca. A ameaça de punição contra o soberano está fora do mundo, no longínquo céu, enquanto o súdito tem a sombra da punição terrena e divina, esta última corporificada pelo soberano, acompanhando-o lado-a-lado, dia-a-dia. O mais forte, aquele que concentra mais poder, está menos pré-disposto ao medo. Então este certo relaxamento no controle do soberano não colocaria em risco o Estado, no sentido do soberano descumprir com suas obrigações?

Analisando a mecânica de controle, no modo hobbesiano, quando aplicada ao soberano infiel, ou seja, que não crê em Deus, que não é cristão, conforme qualificação do próprio Hobbes, a vulnerabilidade do poder do Estado fica ainda maior. Como confiar numa punição divina quando não há crença na divindade? O mecanismo de controle voltado ao soberano ateu é mais frágil ainda. Hobbes parece ter caído na sua própria armadilha. Concebeu como necessária a existência de um poder absoluto para limitar o desejo insaciável dos homens mas, ao que parece, não deu tanta importância aos limites do desejo do soberano que também é homem e, portanto, também deseja mais e mais. Provavelmente sua coerência racional obrigou-o a defender a premissa de que um absoluto para ser limitado não é mais absoluto, portanto, um absoluto não pode ser limitado por alguém. Talvez, para Hobbes, o soberano não seja homem e, portanto, não seja lobo.

Hobbes com sua tendência às determinações mecanicistas, não dá margens para pensar o indivíduo como um ser indeterminado, com um poder imaginário e criativo, com potência para reagir e enfrentar a coerção. Essa potência, associada a um possível esgotamento diante das repressões, causada pelo acúmulo de desejos reprimidos fruto da mecânica de controle podem num dado momento fazer a balança do poder pender mais para o lado do desejo do que do medo. Os súditos, ou um grupo podem se sentir livres para transgredir a lei, suprimindo inclusive a punição, seja através de uma negociação, seja por corrupção. Hobbes não conta que a potência criadora e o esgotamento das repressões, podem levar os súditos a transgredir o controle do rei. Numa aproximação com a psicanálise seria não dar conta do que foi reprimido.

Parece que Hobbes acertou muito mais no corpo humano do que no corpo político. No corpo humano soube identificar o desejo e o medo como elementos constitutivos do indivíduo, em seu estado mais primitivo representado pelo estado de natureza, que sem um poder capaz de impor limites, é cenário do estado de guerra, colocando o homem na mira do medo da morte. Ainda no corpo humano, Hobbes não confiou na possibilidade do auto-domínio, fazendo sua aposta num poder exterior como meio de superar o o estado de guerra do estado de natureza. Hobbes não acreditou na possibilidade psicológica do humano de se dominar, ou suportar, ou superar. Não considera que o indivíduo tem um poder imaginário, uma potência criadora, capaz de inventar condições que possibilitem uma convivência pacífica do eu consigo mesmo e do eu com o outro.

Com relação ao corpo político, constituído pelos súditos e pelo soberano, que usa o medo para limitar o desejo insaciável de cada cidadão, Hobbes parece apostar em demasia no artificialismo, não dando muita importância ao fato de que o soberano também é homem e requer controle e limites. Hobbes deixa o soberano a mercê do próprio desejo, sem fazer uso mais conciso do medo como instrumento de coerção, afim de estabelecer limites para conter os avanços da insaciabilidade e ao auto-interesse. Muito provável que nessa condição o indesejado estado de guerra retorne. Faltou ampliar as formas de coerção à quem detém a soberania. Caiu na contradição inerente ao absolutismo. É necessário ser absoluto para regular os outros, mas, na medida em que é absoluto, não precisa ser regulado.

Podemos pensar que não só o homem moderno, mas todas as configurações possíveis da face humana re-tém em si uma inclinação ao conflito, independentemente de ter origem numa pré-disposição natural, ou num condicionamento cultural. Diante desta inclinação, algum limite externo, que neste trabalho identificamos como mecânica de controle, se faz necessário para uma vida, na qual reine a paz. Agora, esse controle precisaria ser comum a todos e construídos por todos e, além do mais, só controle não basta. Para nos distanciar da morte violenta, se faz necessário o desenvolvimento da perspectiva do auto-domínio, da ética da responsabilidade, da alteridade, da responsabilidade pelo outro.  Assim, em conformidade com a idéia de Hobbes, é necessário conter sem suprimir, e longe de Hobbes, pensar para os dias atuais novas propostas éticas, identificadas com o propósito fundamental da política e da vida, ou seja, a felicidade, partindo de uma reflexão substancial a respeito do desejo de poder e do medo da morte, tanto de quem é cidadão como de quem é governo.

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1 “Por ser filósofo, Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aquelas qualidades anti tradicionalistas da nova classe, que iriam levar três séculos para se desenvolver por completo. O seu Leviatã não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente um «cálculo das consequências», que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade, cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade. A chamada acumulação de capital que deu origem à burguesia mudou o próprio conceito de propriedade e riqueza: estes já não. eram mais considerados como resultado da acumulação e da aquisição, mas sim o seu começo; a riqueza tornou-se um processo interminável de se ficar mais rico. A classificação da burguesia como classe proprietária é apenas superficialmente correcta, porquanto a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela, contanto que concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza, e considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado como simples instrumento de consumo.” (O Sistema Totalitário, p.205)

2 Cf. RIBERIO, Renato Janine. Ao Leitor sem medo. p. 57

3 Assim como Hobbes, Freud, mais especificamente na obra O Mal Estar na Civilização, considera o homem um ser tencionado e agressivo, carente de um poder restritivo, como único meio de garantir a convivência civilizada num estado organizado e seguro. Todavia, a repressão necessária ficará por conta do indivíduo cujo destino estará delineado a matar boa parte seus desejos de incompletude.

4 “A lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não contrário à regra.” (Leviatã, XXVI, p207)

5 “Uma pena é um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou  omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens fique mais disposta à obediência.” (Leviatã, XXVIII, p.235)

6 “Portanto Deus, que vê e dispõe todas as coisas, vê também que a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer, e nem mais nem menos do que isso.” (Leviatã, XXI, p172)

7 Cf. BOBBIO. Thomas Hobbes, p.60

8 Cf. BOBBIO. Thomas Hobbes, p.60

9 Cf. BOBBIO. Thomas Hobbes, p. 123

10 Cf. RIBEIRO. A Marca do Leviatã, p. 78

11 Hobbes, além da preocupação com a geração de empregos e reforma agrária, tem uma preocupação com a seguridade: “E sempre que muitos homens, por um acidente inevitável, ser tornam incapazes de sustentar-se com seu trabalho, não devem ser deixados à caridade de particulares, mas serem supridos (tanto quanto as necessidade da natureza o exigirem) pelas leis do Estado.” (Leviatã, XXX, p.258) E Hobbes ainda estende sua preocupação para as questões tributárias, manifestando sua simpatia pela taxação sobre o consumo: “Pois que razão há para que aquele que trabalha muito e, poupando os frutos do seu trabalho, consome pouco seja mais sobrecarregado do que aquele que vivendo ociosamente ganha pouco e gasta tudo o que ganha, dado que um não recebe maior proteção do Estado do que o outro? Mas quando os impostos incidem sobre aquelas coisas que os homens consomem, todos os homens pagam igualmente por aquilo que usam e o Estado também não é defraudado pelo desperdício luxurioso dos parlamentares.” (Leviatã, XXX, p. 257)

12 Cf. MACPHERSON, A Teoria Política do Individualismo Possessivo, p.64

13 “Por boa lei entendo apenas uma lei justa, pois nenhuma lei pode ser injusta.” (…) “Uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e, além disso, evidente.” (Leviatã, XXX, p.258)

14 “Resta, portanto, que em toda igreja cristã, isto é, em toda cidade cristã, a interpretação da Sagrada Escritura, isto é, o direito de decidir todas as controvérsias, depende e deriva da autoridade daquele homem, ou corte, em cujas mãos se encontra o poder supremo.” (Do Cidadão, XVII, p267)

15 “Não existe nesta vida nenhuma ação do homem que não seja o começo de uma cadeia de conseqüências tão longa que nenhuma providência humana é suficientemente alta para dar ao homem um prospecto até o fim, E nesta cadeia estão ligados acontecimentos agradáveis e desagradáveis, de tal maneira que quem quiser fazer alguma coisa para seu prazer tem de aceitar sofrer todas as dores a ele ligadas; e estas dores são as punições naturais daquelas ações que são o início de uma mal maior que o bem. E daqui resulta que intemperança é naturalmente castigada com doenças, a precipitação com desastres, a injustiça com a violência dos inimigos, o orgulho com a ruína, a covardia com a opressão, o governo negligente dos príncipes com a rebelião, e a rebelião com a carnificina.” (Leviatã, XXXI, 270)

16 Cf. BOBBIO, Thomas Hobbes, p. 150

17 Cf. HOBBES, Leviatã, p. 172

18 “Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar paz e a defesa comum.” (Leviatã, XVII, p144)

19 Cf. BOBBIO: “…obedecendo ao Estado o cidadão mata dois coelhos com uma só cajadada: ganha a paz na terra e, ao mesmo tempo, também no céu.” (Thomas Hobbes, p. 149)

20 Cf. RIBEIRO. Ao Leitor Sem Medo, p. 206.

21 Cf. HOBBES, Leviatã, XLIII, p 412

22 “A teologia hobbesiana conforma: reduz os princípios do cristianismo à crença mínima em que “Jesus é o Cristo”, torna arbitrários os demais artigos de fé, suprime o Inferno e faz da “morte eterna” prometida aos maus apenas uma segunda e definitiva morte. Não é doutrina de um ateu, mas de um deísta: depurar a religião, procurar – como o cônego Hales – um denominador comum litúrgico, que afaste as divergências doutrinárias nas “coisas indiferentes”, que por isso mesmo são reguláveis pelo soberano e passa a expressar, simplesmente, a obediência de cada fiel, seu apetite de paz.” (Ao Leitor Sem Medo, p. 49)

23 Renato Janine Ribeiro na obra Ao Leitor Sem Medo, define como gêmeos o par medo-esperança, contudo, o sentido que aqui damos é de um par mais primitivo que seria formado pelo medo e pelo desejo.

HOMO HOMINI LUPUS EM HOBBES E FREUD

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO DE FILOSOFIA

FILOSOFIA  SOCIAL E POLÍTICA

HOMO HOMINI LUPUS EM HOBBES E FREUD

MARCOS KAYSER

São Leopoldo, junho de 2005.

HOMO HOMINI LUPUS EM HOBBES E FREUD

Introdução

Aproximar Hobbes e Freud pode causar certo estranhamento. Um por ser considerado filósofo, outro psicanalista, o primeiro voltado à política, o segundo à psiquê. Castoriadis começa a desfazer este suposto distanciamento e afirma que a psicanálise tem, no essencial, o mesmo objetivo que a política, ou seja, a autonomia do sujeito. Talvez por ser filósofo e psicanalista, Castoriadis não só compreendeu mais facilmente a aproximação destas duas áreas do conhecimento, como colocou uma pergunta comum a ambas: “como posso ser livre, se sou obrigado a viver numa sociedade em que a lei é determinada por outros?” E continua: “como posso ser livre se sou governado pelo meu inconsciente1?” Os que insistem na separação e no distanciamento dirão que a primeira pergunta é feita para o filósofo e a segunda para o psicanalista. Assim, a primeira pergunta quem estaria habilitado a responder seria a Filosofia, enquanto que a segunda seria a Psicanálise. Aqui, sob ambos olhares, vamos tentar abordar o pressuposto de uma tendência humana ao conflito, à destruição, à morte. “O inferno são os outros” como diria Sartre. “Homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem), conforme Hobbes e Freud.

Da observância de diversas formas de manifestação da violência que marcaram a história da humanidade ao longo dos séculos e se prolongam nesse início de século XXI, supomos que, com outras vestes, em plena sociedade civilizada, continuemos sendo bárbaros. Desejo de mais e mais poder e constante ameaça da morte violenta, semelhante ao estado de natureza, teorizado por Hobbes e que se confirma nos escritos psicanalíticos, chamados sociais, de Freud, são marcas do nosso tempo. Hobbes e Freud, coincidem quanto ao pressuposto antropológico e/ou psicológico do “homo homini lupus”, como também na necessidade de um Estado forte como única via para a paz. Hobbes vê nesse Estado, instituído pelo pacto entre os homens, num ato da razão e da vontade, uma saída triunfante, pois é garantia de paz e prosperidade. Freud vê como uma saída necessária, mas nada tranqüila, visto que estará carregada de mal-estar, pois o indivíduo terá seu desejo de liberdade reprimido, na medida em que cede parte dela em troca de segurança.

Apresentaremos sinteticamente alguns sintomas, para falar numa linguagem não exclusivamente filosófica, dessa condição agressiva da natureza humana, a ponto de Hobbes e Freud usarem a metáfora “homo homini lupus” para expressar a luta primitiva entre Eros e Tanatos, que se estende na sociedade e nos faz refletir sobre as formas de superar e/ou suportar o paradoxo inquietante do desejo de paz diante da realidade da guerra.

Homo homini lupus em Hobbes

Uma espécie de psicologia da natureza humana é o ponto de partida de Hobbes. O homem é analisado numa condição primitiva da existência, ou melhor, em condições mínimas de sobrevivência. Este estado, a que Hobbes denomina de estado de natureza, é reflexo da condição primitiva, em que o desejo insaciável do homem, partilhado de uma liberdade total, ausência de obstáculos, e de uma igualdade generalizada, onde todos podem tudo, coloca o homem em estado de guerra, em constante ameaça da morte violenta. A lei natural apesar de existir não tem uma valoração prática, na medida em que não há um poder capaz de julgar nem aplicar as sanções conseqüentes de eventuais desobediências. No estado de natureza, todos são juízes e cada um obedece tão somente a si.

A indeterminação histórica do estado de natureza hobbesiano e a possibilidade de se constituir exclusivamente numa hipótese lógica, arquitetada para demonstrar os elementos constitutivos do homem, não desfaz a validade da teoria, visto que, em tal estado, as relações humanas competitivas possuem similaridades com as relações observadas nas sociedades contemporâneas, mais especificamente nas sociedades de mercado possessivo, conforme cita Macpherson. Podemos identificar nestas sociedades homens calculistas de seus próprios interesses, capazes de apoiarem um governo e pactuarem ao seu favor, desde que este soberano imponha regras que permitam a invasão sem a destruição mútua:

“Apenas na sociedade de mercado possessivo é que todos os indivíduos precisam se invadir mutuamente, e somente nelas podem fazê-lo dentro das regras da sociedade.” (Teoria do Individualismo Possessivo, II, p. 109)

Hobbes escreve em meio à guerra civil inglesa. Tanto vida pública como privada estão imersas no conflito configurando um paradoxo que se estende aos nossos dias: por que deflagrar uma guerra, por em risco a vida e destruir-se precocemente, se o maior desejo do homem é escapar do maior dos males: a morte? E a pergunta que segue: como alcançar a paz num palco de sucessivos conflitos? Uma das primeiras conclusões de Hobbes é que o estado de total liberdade e igualdade, no qual todos podem tudo, inclusive se invadirem mutuamente já que possuem as mesmas potencialidades, precisa ser ainda nesta vida superado.

Se a realidade factual de Hobbes por causa da guerra é turbulenta, o momento da história do pensamento humano também é. Processa-se a ruptura do medievo com a modernidade, no habitat de Hobbes, a passagem da Inglaterra medieval para a Inglaterra moderna. A fé cede seu papel de protagonista à razão. A felicidade, a grande meta dos homens, precisa começar a ser conquistada aqui na terra e não ficar aguardando o dia seguinte, numa suposta transcendência. Hobbes provoca uma inversão da perspectiva clássica da felicidade. Enquanto que, para os filósofos antigos, a idéia de felicidade estava atrelada a uma fruição tranqüila do bem supremo, um movimento evolutivo, vislumbrando um fim pretendido e exaltado, em que o desejo poderia repousar, para Hobbes a felicidade está caracterizada pela inquietude de um movimento sem fim determinado. A inexistência de um fim último implica na impossibilidade de projetar o contentamento do homem para o futuro, se assim fosse, cessaria a sucessão contínua do movimento o que significaria a cessação da própria felicidade. O êxtase para Hobbes é agora. Nossa ganância é por um bem presente. Só a conquista deste bem será garantia do próximo bem. Bem aqui tem a significação de poder. Estamos assim condenados à inquietação e ao descontentamento, na medida que a busca é infindável, não se esgota na conquista momentânea. A natureza da felicidade se deduz deste esforço repetitivo, chamado desejo, conatus:

“…a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito, pois não existe o finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais. E ao homem é impossível viver quando seus desejos, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A felicidade é um contínua progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo.” (Leviatã, XI, p.91)

Os objetos são bons porque eles são úteis e eles são desejados por essa razão. A busca de um novo bem é busca de algo útil à manutenção do movimento e na medida que se acumula uma quantidade de bens, incrementa-se uma quantidade correspondente de poder. O incremento do poder de um indivíduo implica o decréscimo de poder do outro.

Quanto mais bens um indivíduo obtém, menos o outro tem. Temos uma relação muito mais econômica do que fraterna. O ser humano não é naturalmente social, não é por natureza um animal político com tendência a uma comunhão. Sob esta idéia poderíamos pensar que o homem não é por natureza cristão. Uma eventual tristeza diante da desgraça do outro é motivada mais pelo medo do que um sentimento de amor pelo próximo:

“Assim, não buscamos a sociedade naturalmente e por si própria, mas sim para que possamos dela receber alguma honra ou lucro.” (De Cive, I, 30)

“Toda a sociedade é portanto, ou para o lucro, ou para a glória; isto é: não tanto por amor de nossos próximos quanto pelo amor de nós mesmos.” (De Cive, I, 31)

Numa condição em que se caracteriza o individualismo possessivo se faz-se necessário aumentar o poder e se precaver do inevitável, mas imprevisível, ataque do outro. É razoável antecipar-se ao ataque inimigo, e a melhor estratégia é agredir antes de ser agredido. A famosa frase usada no futebol, “o melhor ataque é  melhor defesa”, pode também ser colocada à serviço da política. E Hobbes previne:

“que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de modestos limites, não aumentassem, por invasões, o seu poder, não conseguiriam subsistir por muito tempo limitando-se a uma atitude defensiva (Leviatã, XIII).

Para Hobbes, as três causas principais encontradas na natureza (ou psicologia) do homem que o levam a guerra são: a competição, a desconfiança e a glória. Todas vestidas de dois constituintes fundantes do homem e da sociedade: o desejo e o medo. A primeira motivada pelo lucro, a segunda pela segurança e a terceira pela reputação.  Todas são inclinações que no estado de natureza, sem um poder suficientemente forte capaz de julgar e impor a regra, transfiguram o homem em lobo de homem (homo homini lupus):

“Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção.” (Leviatã, XIII, p109)

O homem hobbesiano não quer apenas vencer a batalha contra o inimigo e sobreviver, quer viver melhor, e, por isso, como homem da vontade e da razão, abre mão de parte de sua liberdade em troca de segurança e prosperidade. Institui o Estado absoluto, através do pacto. E por que absoluto? Porque o ímpeto do homem, que pode ser associado à pulsão de morte freudiana, só pode ser contido por um poder que concentre o poder de todos, absolutamente mais potente. Para conter, em certa medida, a insaciabilidade do desejo humano, só mesmo um poder capaz de intimidar o lobo por meio do medo da punição. O soberano estabelece um poder coercitivo terreno para assegurar o cumprimento das leis de natureza. A violação da lei por parte dos súditos acarretará em punição por quem detém todo o poder de punir: o soberano.  Além da punição terrena, tem a punição divina que consiste na morte eterna. O balizamento para determinar as transgressões é dado pelas leis civis, criadas para tornar escritas e públicas as leis naturais. Nas mãos do soberano está o monopólio do medo.

Mas como o homem não é só medo é também desejo, Hobbes, da necessidade de manter o homem com a esperança de desejos satisfeitos, completa sua mecânica de controle com o componente da recompensa terrena e divina. Na terra o soberano recompensa seus súditos com a garantia da segurança e oferecendo as condições necessárias para que cada súdito, sob sua própria diligência, conquiste riqueza e conforto. No céu a recompensa está na vida eterna.

Hobbes entende assim que numa sociedade controlada por um Estado absoluto, que se impõe pela ameaça do medo da punição e pela esperança da recompensa, o lobo transforma-se em cidadão. Todavia, a psicologia hobbesiana não deu muita atenção para os desejos reprimidos deste cidadão.

Homo homini lupus em Freud

Apesar das obras ditas sociais de Freud não merecerem o mesmo entusiasmo dedicado por seus analistas aos demais escritos, os mais atentos, ou melhor, os mais interessados perceberão o quanto para Freud era pertinente a extensão de suas teorias da psique do indivíduo para o contexto social. Na medida que o exterior, mais especificamente, o outro, intervém no indivíduo, como modelo e também como adversário, seria no mínimo imprudente ignorá-lo.

Coincidindo com Hobbes, como propósito da vida humana, Freud identifica a busca intensamente do prazer, evitando a dor, concluindo que a vida se define pelo princípio do prazer2. Princípio geral que domina o funcionamento do aparelho psíquico do indivíduo desde o início de sua vida. Todos desejam ser felizes:

“Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.” (Mal-Estar na Civilização, p.94).

É o princípio do prazer, inerente ao psiquismo humano, que decide sobre o propósito da vida do indivíduo e conta com a pulsão de vida (Eros) para chegar ao êxtase existencial. Todavia, Eros não está sózinha, concorre com Tanatos, pulsão de morte3, que segundo Freud, tende a forçar o indivíduo ao retorno de seu estado anorgânico (não-vivo, anterior de ser vivo). Mas como se não bastasse, a luta entre Eros e Tanatos, Eros possui uma dualidade objetiva que a coloca em situação de conflito intrínseco. Eros voltado para o prazer e Eros voltado para a união com os outros, em busca de novas combinações de vida.

Freud reconhece, entretanto, que esse objetivo geral da felicidade jamais será satisfatoriamente alcançado, uma vez que tanto o macrocosmo, ou seja, a civilização4, quanto o microcosmo do homem, ou seja, o corpo, representa muito mais sofrimento do que felicidade. Para Freud as principais fontes de infelicidade e sofrimento, são o nosso próprio corpo, as forças exteriores da natureza e as adversidades oriundas das relações que estabelecemos com o outro, sendo este último enfrentamento o mais penoso de todos:

“… os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus.” (Mal Estar na Civilização, p133)

A denúncia do homem lobo é grave. Trata-se de uma tendência agressiva, uma pulsão5 que atravessa o comportamento humano e se expressa nas mais variadas formas de relação entre os seres humanos. A agressividade não é determinada pela sociedade, já nos tempos primitivos, como no estado de natureza hobbesiano, esta pulsão reina no interior obscuro da individualidade. Ligada ao narcisismo e à onipotência, se estende ao exterior, à sociedade, pela negação do outro, que só existe como instrumento de satisfação do ego6 (eu). A sociedade impõe limites e o ser humano se vê obrigado a moderar suas expectativas, domesticando o princípio do prazer, reduzindo-o a um princípio de realidade7. Colocando em primeiro plano a árdua tarefa de evitar o sofrimento, a busca pela satisfação do princípio do prazer passa a ser secundária. O dilema está criado. Se ao homem não é permitido realizar plenamente o programa do princípio do prazer, o mesmo homem não deseja abandonar o esforço para conseguir aproximar-se da sua consecução, passando a ser um desafio essencialmente subjetivo que perpassa o indivíduo ao longo de sua existência.

Apesar dos regramentos e das limitações impostas ao homem em sociedade, impedindo a conquista da felicidade idealizada, a civilização é um mal necessário. Como Hobbes, Freud defende que a vida dos homens só é viável quando uma força com poderes maiores do que o poder individual se faz presente:

“A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização.” (Mal-Estar na Civilização, p.115)

Se, por um lado, as restrições viabilizam a vida em sociedade, trazem, por outro, sérias implicações à organização psíquica do ser humano. O homem se constitui como ser social, aprisionado a um dilema que parece insolúvel. No estado de natureza tinha uma liberdade ilimitada, sem nenhum valor, uma vez que um indivíduo livre podia colocar em risco a vida do outro sobre o qual avançava e também a sua própria vida, bastando esbarrar num indivíduo mais forte à sua frente, diante do qual decaía. No estado de sociedade o Estado como entidade reguladora, mantém uma certa ordem, às custas de restrições às liberdades individuais. Freud identifica que, por conta dessa liberdade perdida, o ser humano estará permanentemente em conflito com a própria civilização, reconhecendo que cada revolução, cada impacto que a humanidade experimenta, é uma tentativa de externar, e superar, esse conflito, essa inquietação. E, é assim que se dá evolução da civilização:

“O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo.” (Mal-Estar na Civilização, p.116)

Assim como Hobbes, Freud sentencia: “O homem civilizado trocou a parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”.

Conclusão

Na tentativa de proteger o homem do lobo, ou converter o lobo em cidadão, a proposta de Hobbes da criação de uma instância superior, no sentido de pura imanência do poder, que viabilizasse a paz, sem ignorar a insaciabilidade do homem desejante, falhou se observada na história do absolutismo. O Estado absoluto não foi capaz de pôr fim à guerra de homens contra homens. Hobbes soube identificar o desejo e o medo como elementos constitutivos do homem que o colocam em preeminência do conflito, mas ignorou a possibilidade do auto-domínio, preferindo apostar todas as “fichas” num poder externo como meio de superar o conflito. Hobbes não acreditou na possibilidade do suportamento, capacidade do corpo humano suportar o conflito, nem confiou na possibilidade de transformar o conflito degradante em conflito produtivo. Hobbes entendeu que a saída triunfante para o problema da guerra estava na criação do monstro disciplinador, o Leviatã. Não contou que o monstro tinha corpo humano, era homem sujeito à insaciabilidade do desejo e transgressões. Hobbes deixou o soberano (governo) a mercê do próprio desejo, sem limites, sujeito à insaciabilidade e ao auto-interesse de si mesmo. Seguindo os pressupostos de Hobbes, as formas de coerção e premiação, aplicadas a quem detém a soberania, não são suficientemente eficientes para policiar a polícia, ou seja, o soberano. Hobbes caiu na sua própria armadilha. Concebeu como necessária a existência de um poder absoluto para limitar o desejo insaciável dos homens mas não pensou na necessidade de limitar o soberano que também é homem. Provavelmente sua coerência racional obrigou-o a defender a premissa que diz: um absoluto para ser limitado não é mais absoluto, portanto, um absoluto não pode ter limites, não pode ser limitado por alguém. Só se, para Hobbes, o soberano não seja homem e, portanto, não seja lobo.

Freud, sem entrar no mérito da política de Estado, é como Hobbes, defensor da propensão humana à felicidade, todavia, é trágico. A civilização impõe restrições e proibições ao princípio de prazer (Eros) para conter a agressividade inata, mas, ao mesmo tempo, alimenta a tendência do ser humano de retornar ao estado inorgânico, à morte. Para Freud não há saída, estamos condenados ao triunfo da pulsão de morte. Ao final o lobo triunfará. Não há solução externa que iniba a tendência agressiva. Só nós resta uma alternativa, a que denomino, por minha conta e risco, de suportamento, que passa pelo conceito de auto-domínio, dar conta das perdas, dar conta da dor.

No funcionamento psíquico, quanto mais o supereu (superego) for suprido de referenciais éticos, mais severidade terá com as intenções instintivas do isso (id). Supereu vazio é condição de excelência para a pulsão de morte. “O lobo está livre para atacar”. Para que o indivíduo dê conta da impossibilidade da realização de boa parte de seus desejos, a civilização tem o papel de reforçar os padrões morais e éticos, sem os quais ela não se sustentaria.

Retomando Castoriadis, para quem “a plena democracia, e a aceitação do outro, não formam a tendência natural da humanidade” (Figuras do Pensável, p.268), a sociedade não é instituída apenas para conter a violência, mas principalmente para fazer o indivíduo sair de sua onipotência e de seu egocentrismo (mônada psiquíca), reconhecendo que fora de si há outros seres humanos. Respondendo as duas questões de Castoriadis, apresentadas na introdução deste trabalho, ele mesmo identifica no desenvolvimento de uma subjetividade reflexiva, em que o indivíduo estabelece um outro tipo de relação consigo mesmo e com o seu inconsciente, a condição de possibilidade para a conquista de uma autonomia.  E como a autonomia, segundo o próprio autor, não pode ser imposta nem ensinada, a psicanálise é o acesso à autonomia, a partir da descoberta de motivações e pulsões escondidas e recalcadas em mim, com a ajuda do outro.

Em suma, é preciso manter no homem acesas as chamas do desejo (Eros) sem que elas o consumam e se generalizem em guerra (Tanatos), e, para isso, é preciso limitar sem suprimir. Ao mesmo tempo as condições de possibilidade para a paz passam pelo auto-domínio que só pode ser conquistado através do desenvolvimento de uma ética da responsabilidade. Na onda do individualismo possessivo, seria dizer: o homem precisa se conscientizar que sua felicidade depende da felicidade do outro. Meu egoísmo precisa ser solidário com o egoísmo do outro.

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ZIMERMAN, David E. Fundamentos Psicanalíticos. Porto Alegre: Artmed, 1999.

1 O inconsciente tem um status de outro.

2 Atividade psíquica que tem por objetivo evitar o desprazer (aumento das tensões) e proporcionar o prazer (redução das tensões).

3 Força contrária à pulsão de vida que tende dissolve-la e remeter o indivíduo a seu estado inorgânico original

4 Freud no Mal Estar na Civilização, p. 109, cita: “a palavra civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais e que sermos a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.”

5 Conforme Laplanche e Pontalis, pressão ou força energética que faz o organismo tender para um objetivo, cuja fonte está numa excitação corporal

6 Conforme David E. Zimerman, ainda persiste a clássica definição de que o ego (eu) é a principal instância psíquica, funcionando como mediadora, integradora e harmonizadora entre as pulsões do id (isso), as exigências e ameaças do superego (supereu) e as demandas da realidade exterior. Entende-se por id uma fonte de energia psíquica, um reservatório de pulsões quase todas inconscientes.

7 Aparece como uma modificação do princípio de prazer, sem suprimi-lo, que garante a obtenção das satisfações no real. A criança recém nascida ainda é incapaz de diferenciar o seu Eu do mundo externo. O seio da mãe é o primeiro objeto que mostra a existência de um fora.

A (IM)POSSIBILIDADE DA FELICIDADE NO MUNDO DA DOR NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-FILOSÓFICA

A (IM)POSSIBILIDADE DA FELICIDADE NO MUNDO DA DOR

NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-FILOSÓFICA

“Para sermos felizes, até certo ponto é preciso que tenhamos sofrido até o mesmo ponto.”

(Edgar Allan Poe)

SUMÁRIO

1. A felicidade (ideal) na transcendência

1.1. A felicidade adiada – Platão

1.2. A felicidade endeusada – Agostinho

1.3. A felicidade recompensada – Kant

2. A felicidade (natural) na imanência

2.1. A felicidade moderada – Aristóteles

2.2. A felicidade preparada – Epicuro

2.3. A felicidade resignada – Sêneca

3. A felicidade (real) na carência

3.1. A felicidade negada – Schopenhauer

3.2. A felicidade afirmada – Nietzsche

3.3. A felicidade condenada  – Rosset

INTRODUÇÃO

Para alguns, quem sabe muitos, a felicidade não é um conceito verdadeiramente filosófico, pois pensam que não se constitui em critério ético. É um fenômeno apenas vivencial. Mas será que a filosofia não tem interesse pelo genuinamente humano? Parece que pensamos a realidade como se, enquanto sujeitos, fôssemos neutros e não pertencentes a essa mesma realidade. A felicidade está ligada a completude do ser humano, com a finalização do ser humano. Isto não quer dizer que está ligada essencialmente ao agradável, até porque a felicidade não é a ausência do sofrimento, mas algo que tem a ver com a realização plena, que pode coexistir com o sofrimento, que é tanto humano como a alegria e o prazer.  Se tirarmos o vivencial o que sobra para a filosofia?

A disputa entre felicidade e sofrimento já aparece nos mitos. Além da disputa, está a afirmação de uma vida necessariamente marcada pela infelicidade e pela dor, como podemos encontrar no castigo de Prometeu e no mito de Sísifo. A contradição existencial expressa pela busca da felicidade num mundo de sofrimentos, no qual a humanidade está condenada à desgraça, à morte, já é então mitológica e invade as fronteiras da filosofia sem perder o teor da disputa apesar de renovar as concepções (conceitos) da própria felicidade e da própria dor no decorrer histórico da filosofia. A questão primeira é a pergunta sobre o que é felicidade. A partir desta se sucedem as demais perguntas que fazem da Filosofia um poço sem fundo: Existe uma forma de felicidade única? É possível ser feliz? Como posso ser feliz se não posso satisfazer a todos os meus desejos, especialmente o desejo de sempre viver e de continuar desejando? Como posso ser feliz se ao desejar sofro por carência e por frustração? Como posso viver em sociedade conciliando desejos meus com desejos do outro?

Numa perspectiva histórico-filosófica vamos analisar estas questões em torno do grande tema, felicidade, juntamente das hipóteses pensadas para solucioná-las. Projetar um outro mundo, adequar-se ao mundo ou assumir de vez a impossibilidade?

1. A felicidade na trascendência

1.1. A felicidade adiada – Platão

Para os filósofos da Antiguidade a busca da felicidade tem uma relação estreita com a moralidade, constituindo-se no eudemonismo (do grego eudaimonía), tese segundo a qual o homem virtuoso tem acesso à única fonte de felicidade. Mas para Platão o que vem a ser felicidade?

Para Platão a felicidade é a finalidade do homem. A felicidade, pela conquista do bem, é o fim último do homem. No Filebo distingue Platão entre felicidade e prazer (Filebo 11 b). Referindo-se a felicidade à inteligência e o prazer aos sentidos. Desde logo, pois, refuta a tese cirenaica de que o prazer sensível é o único fim. Mas não exclui da felicidade os prazeres da sensibilidade; estes são honestos desde que subordinados harmonicamente.

Estabeleceu Platão uma divisão geral da virtudes (República 410), obedecendo a um princípio, em que a cada parte da alma corresponde uma virtude principal. Portanto, uma para a razão, outra para a vontade, outra para o impulso sensível, finalmente ainda uma outra para o controle das partes entre si. A prudência, denominada também sabedoria , é a virtude da parte racional. A fortaleza, dita também valentia é a virtude do entusiasmo (thymoiedés), ou seja dos impulsos volitivos e afetos, regrando o coração. A temperança, também chamada autodomínio, medida, moderação, é a virtude da vida impulsiva, instintiva, ou sensível, refreando os prazeres corporais. Uma quarta virtude, a da justiça, resulta da colaboração equitativa de todas as virtudes, garantindo o funcionamento harmonioso das partes da alma, ou seja de suas faculdades.
A virtude é descrita por Platão como um hábito que conduz, ao bem. Ocorre, entretanto, no mestre da Academia a secreta preocupação de que a virtude se obtém pelo saber (Ménon 96, Fédon 82, República em vários itens).

Aceito o ponto de vista socrático de que a virtude é saber, segue dali que os ditames da ética dependem da estabilidade ou instabilidade do conhecimento. A virtude habitual, dependente das opiniões da tradição relativas, seria superada por uma virtude apoiada em outro tipo de conhecimento, definitivo, absoluto. Ora, tal virtude existe como fato; logo existe também tal tipo de conhecimento.

O móvel ético de Platão é favorável ao conhecimento inteletivo. Admitida uma vez a relatividade dos sentidos, deve-se, de outra parte, aceitar a estabilidade da inteligência e que possibilita a ocorrência da virtude. A doutrina da virtude sofre de imediato a influência da doutrina das idéias reais, donde dividir-se em duas espécies: a virtude perfeita, referente a alma espiritual, e a virtude comum, baseada na opinião verdadeira. A virtude perfeita consiste na própria sabedoria, segundo o adágio socrático: a ciência é idêntica à virtude. Não deixa a vontade de seguir o que o a inteligência lhe mostra como bom.

Seguindo os mesmos passos do conhecimento inteletivo, a virtude se adquire andando pelos mesmos caminhos da dialética, para evitar a submissão da razão às paixões inferiores, e dialéticas do amor aspiração ardente pela contemplação das idéias. A virtude comum organiza-se no plano da opinião, portanto nas faculdades emotivas da alma inferior. Neste plano se encontra a maioria dos homens. Esta virtude comum não depende da ciência, mas da educação.

A recompensa ao homem virtuoso é parte do sistema moral de Platão. Neste e noutro mundo acontece o castigo para o mal. O significado desta sanção e o que a justifica é a necessidade de um castigo, para que se evite o mal, e de uma recompensa, para que haja um estímulo levando à prática do bem. Somente a sanção numa vida futura garantirá o triunfo total do bem. Não encontrou Platão dificuldade em estabelecer a sanção futura, visto que admitia a metempsicose e a progressiva possibilidade da purificação da alma. Poderia Platão ter invertido o alcance da sanção, como fez Kant, para em seu nome postular uma vida futura, na qual o bem seria recompensado e o mal punido (já que este não é punido suficientemente na vida presente).

A presença da sanção no sistema moral de Platão não ultrapassa uma visão antropomorfista retirada de situações humanas, de onde foi transportada para o plano geral da metafísica. O mal é um problema e deve ser evitado; o bem é um objeto e produz a felicidade. Mas, dali não segue ainda que o problema do mal se resolva pela sanção e nem se deduz que a felicidade sobrevenha como uma recompensa.

No diálogo Górgias, o personagem Cálicles, em seu diálogo com Sócrates,  concebe que a vida feliz é aquela vida considerada fácil, caracterizada pela intemperança e pela licenciosidade. Felicidade é para Cálicles sentir os maiores desejos e ter um prazer extremo em satisfazê-los. Felicidade se mede pela quantidade e não pela totalidade.

Já no diálogo Filebo, Sócrates refuta a tese segundo a qual a vida feliz seria unicamente composta de gozo, prazer e contentamento de todos os afetos, ou seja, onde apenas os prazeres físicos são considerados. Sócrates inclui os prazeres da virtude, apresentando uma compreensão racionalista em que o sujeito tem a capacidade de se separar da experiência imediata do prazer, para compará-lo aos sofrimentos futuros que poderiam vir a ocorrer. Temos então os bons prazeres, que são aqueles que contribuem para a felicidade do indivíduo, e os maus, que, embora parecendo favoráveis, produzem conseqüências desagradáveis. Sob o crivo da razão é possível calcular e medir as ações que venham a determinar a felicidade. A vida feliz é marcada pela medida e pela ordem. A eudaimonía é, portanto, uma atividade conduzida em conformidade com a razão e em concordância com a virtude.

Na vida prática, o filósofo-governante da República, que consegue contemplar a forma do sumo bem, quererá reproduzi-lo na cidade. A vida contemplativa é a mais feliz porque é uma atividade conforme à virtude, voltada ao conhecimento das realidades divinas. Na cidade da República, escravos e mulheres estão excluídos desta possibilidade.

Todavia, não nos esqueçamos que em Platão temos o que podemos chamar de dualismo antropológico, no qual o indivíduo é corpo e alma, e o corpo é o cárcere da alma, pois impede a alma de pensar a si própria e a toda a realidade. No mundo sensível, onde vivemos, os sentidos se constituem em obstáculos para a alma atingir o verdadeiro conhecimento, fato que só ocorrerá quando a alma separar-se das necessidades corpóreas, somente após a morte, na outra vida, no mundo inteligível, no mundo das Idéias. No diálogo Fedon, podemos concluir que a alma é imortal, segundo Platão, e, neste sentido, a felicidade é a libertação da alma. A felicidade, então, está adiada, aguardando a morte do corpo quando advém a imortalidade. A tarefa do filósofo, na sua busca pelo verdadeiro conhecimento, ultrapassando o domínio das aparências sensíveis, seria prepara-la para o regresso ao mundo das Idéias.

1.2. A felicidade endeusada – Agostinho

Agostinho, como bom cristão, tem a felicidade como um dom de Deus e o homem deve procurá-la através da purificação da alma. Para purificá-la o homem tem de reconhecer a condição miserável da humanidade após o pecado original, e tem de ter a humildade de reconhecer a felicidade como alheia a si. O homem tem de se tornar digno de receber a graça. A idéia da ascese da alma é uma idéia platônica, que influenciou Agostinho profundamente. O tema da superioridade da alma sobre o corpo, e de sua purificação durante a vida para que não seja punida após a morte, é explicitado no diálogo Fédon .

Para Agostinho, a semelhança do homem com o seu criador é a razão. Deus, conhecedor de todas as coisas, possui também a razão infinita. Porém a razão humana está corrompida, e distante da divina. O homem tem um “déficit moral”, e por isso não consegue cumprir plenamente a sua natureza de animal racional. Os desejos e as paixões impedem um bom uso da razão, e impedem uma vida contemplativa.

O problema do pecado original é fundamental no pensamento de Agostinho. Antes de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, a alma encontrou sua perfeição no paraíso. Livre de dúvidas e incertezas, o homem apenas era no seio da natureza. Nada foi negado a Adão e Eva, e eles estavam integrados a toda criação, circulando livremente e de maneira abençoada. Mas a vontade é infinita, e ao homem foi dado o poder de escolher. Assim, seduzida pela serpente, Eva desobedece ao único mandamento até então existente, escolhendo o mal e se afasta do Bem Supremo . A partir de então tem o homem a necessidade da purificação da alma.

A liberdade, para Agostinho, vem a ser a capacidade consciente e reflexa que tem o espírito de determinar por si e espontaneamente, a querer e preferir acima de tudo o Bem absoluto e perfeito, do modo que este se apresente, e nunca preferindo nada contrário. Deus, do alto, abarca a todos aqueles que o invocam com um olhar e pode iluminar alguns com sua graça. Muitos são chamados, mas poucos escolhidos.

Esta é a causa dos pecados da humanidade, o livre-arbítrio. Pela perversão da vontade o homem escolhe a privação do ser. Esta situação só encontra redenção em Jesus Cristo, o mediador entre Deus e os homens. O cristão tem de aceitar pela fé o mistério da Trindade, na qual Jesus Cristo é o verbo encarnado, vindo ao mundo como homem, para redimir a humanidade. É preciso pois que o homem tenha fé e acredite em algo além de si e do mundo sensorial, em algo invisível. Precisa ter a humildade de admitir seu “déficit moral”.

A purificação da alma para receber a revelação é feita de várias formas. Agostinho defende ardorosamente um ascetismo, chegando a condenar o casamento e a procriação, e a cantar a maravilha do celibato. O homem precisa se livrar das paixões compreendidas por tudo aquilo que move (ou comove) a alma. Somente uma alma estável é capaz de perceber a Idéia. Para esta elevação do espírito, é necessário também o auto-conhecimento. Estando a alma purificada, está preparado o terreno para conhecer. A fé chama a razão para algo além dela própria, para o mistério. À razão cabe investigar os conteúdos da fé. O homem precisa crer para entender e este entendimento é feito racionalmente. Todavia, o conhecimento da razão divina ultrapassa em muito a finitude da razão humana e, por isso, o homem precisa novamente da fé para alcançar o conhecimento, sendo que este não se esgota nunca, nem quem bebe do conhecimento de Deus sacia sua sede. Deus em sua totalidade é insondável, e qualquer tentativa de abarcá-lo com palavras está fadada ao fracasso. Agostinho retira do Êxodo o que julga ser a melhor definição. Neste trecho Moisés pergunta ao Senhor o que deve dizer na Aldeia quando lhe perguntarem quem encontrou, e Deus assim se define “Eu sou o que Sou”, ou em outras traduções, “Eu sou aquele que é”.

Para Agostinho a felicidade também habita na memória. O homem antes do pecado original, foi em um tempo feliz, e ainda há resquícios desta felicidade. A vida feliz só pode ser alcançada quando se busca a Deus. É voltando a ele que o homem atinge a verdadeira felicidade, e seu ser se completa. Como diz Agostinho, “Tarde Vos Amei, Senhor”, pois sem que ele o soubesse, Deus sempre esteve presente em sua vida, e sua desesperança só teve fim quando retornou à Deus, ou quando se lembrou de Deus. Esta volta só pode ser feita por intermédio do Cristo. A teoria agostiniana de reminiscência afasta-se da teoria platônica, contudo, nesta, a alma contempla as Formas eternas antes de nascer, em outro mundo. Em Agostinho a contemplação da luz divina não é uma lembrança da vivência anterior da alma, mas uma irradiação presente. Deus ilumina o intelecto com sua luz, tornando-o capaz de conhecer segundo sua ordem natural.

Para Agostinho, todos os homens querem ser alegres e felizes, mas a verdadeira alegria só vem de Deus. A carne e seus apelos, a matéria, podem levar o homem a confundir-se e fazer aquilo que pode fazer, mas não aquilo que realmente quer fazer. Deus é a felicidade porque é a verdade. E a alegria reside na verdade. Esta é uma só, e Deus a sua fonte. Reside ela na memória, pois, como exemplifica Agostinho, desde o episódio de sua iluminação em que encontrou a serenidade de espírito, Agostinho encontrou sempre a mesma verdade, e dela se lembrou. Desde que conheceu a Deus, dele se esqueceu, e este permanece em sua memória como fonte de suas delícias. O homem deve invocar a Deus, que já habita nele para voltar a encontrar a verdade. O caminho da purificação é livrar-se principalmente do orgulho e da soberba, das comoções da carne, seguindo exemplo de Jesus Cristo, que foi ao mesmo tempo Deus e homem, verbo imortal e carne perecível. Este morreu para salvar o homem do pecado original.

Também em Platão o homem deve procurar a virtude, deve levar a vida corretamente. Mas o problema da  ascese da alma não é meramente humano, como critica Agostinho. Afinal, vê-se no Mênon e no Protágoras , que, em última instância, são os escolhidos aqueles que alcançarão a verdade. É por escolha dos deuses que são designados os daimons aos homens. O próprio Sócrates é, de certa forma, escolhido pelos deuses, como vaticinou o Oráculo de Delfos ao apontá-lo como o mais sábio dos homens, ou como indicava o seu guia interior, a voz do daimon que lhe mostrava o caminho certo, conforme  descrito na Apologia de Sócrates. Em Platão, aquele que procura a verdade também tem de enfrentar um duro caminho de purificação, através da ascese dialética e há, igualmente, uma forte ascendência da alma sobre o corpo.

1.3. A felicidade recompensada – Kant

Para Kant felicidade é a satisfação de todos as nossas inclinações, tanto em intensidade como em duração.  Diferentemente de Aristóteles, que compreendia o Bem Supremo como aquilo do alcance da felicidade, relacionando ao ofício do sábio, que ao ser um homem feliz não necessitava mais do que o mínimo de tudo que era material, pois a atividade do trabalho, considerada indigna para o senhor, ficava restrita ao escravo, Kant pensa o Bem submetido à lei. Há uma autonomia da lei em relação ao Bem, o que era antes uma submissão da lei ao Bem, passa a ser visto como submissão do Bem à lei. É o que ele, Kant chama de o imperativo categórico: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. (Livro I, Cap. I, § 7)

Para Kant, a faculdade de desejar superior baseia-se no pressuposto de que o homem pode ser um ser puramente racional, pelo fato da vontade que determina a ação deve ser livre, autônoma. A realização daquilo que é moralmente justo só tem valor quando se faz por puro respeito à lei, por dever. O imperativo categórico é um ato puro de enunciação; sem conteúdo. O objeto da lei moral tem, deste modo, a mesma natureza que o objeto do desejo: ele esquiva-se, não sendo nunca encontrado. A ética kantiana é a do recalcamento e a lei moral não admite desculpas, submetendo o prazer à universalidade. O imperativo categórico, é uma espécie de além do princípio do prazer, pois vai contra o bem-estar do sujeito, já que é indiferente a seu bem-estar.

Conforme Álvaro Valls, quando de sua apresentação no Seminário “Aids Quo Vadis”: Tendências e Perspectivas da Epidemia no Rio Grande do Sul, em 28 de julho de 1997, Kant reflete sobre a felicidade e sobre a virtude sempre em função do conceito de dever.  Kant reconhece que o imperativo é apenas uma fórmula, porém ele, que gostava tanto das ciências e que não tinha a intenção de criar uma nova moral, estava apenas preocupado em fornecer-nos uma forma segura de agir. Sua ética é, pois, formal, – alguns até dirão formalista. Ora, o nosso pensador alemão, com seu imperativo categórico, nos forneceu, na prática, um critério para o agir moral. Se queres agir moralmente, (isto é, para Kant, racionalmente,) – o que aliás tu tens de fazer – age então de uma maneira realmente universalizável. Pois aqui está o segredo da ética kantiana: A universalização das nossas máximas (em si subjetivas) é o critério. A moral kantiana, de certo modo, também pressupõe um conceito de homem, como um ser racional que não é simplesmente racional. Portanto, um ser livre, mas ao mesmo tempo atrapalhado por inclinações sensíveis, que ocasionam que o agir bom se apresente a ele como uma obrigação, como uma certa coação, que a sua parte racional terá de exercer sobre sua parte sensível. O dever obriga, força-nos a fazer o que talvez não quiséssemos ou que pelo menos não nos agradaria, porque o homem não é perfeito, e sim dual. Mas o dever, quando nos força, obriga a fazer aquilo que favorece a liberdade do homem, porque o homem é um ser autônomo, isto é, sua liberdade, no sentido positivo, consiste em poder realizar o que ele vê que é o melhor, o mais racional. Poder realizar significa: causar por vontade própria um efeito no mundo, ao lado das causas naturais que pertencem, como diz Kant, (à maneira newtoniana,) ao mecanismo da natureza. O homem, neste sentido, é legislador e membro de uma sociedade ética: é legislador porque é ele que vê o que deve ser feito, e é membro ou súdito porque obedece aos deveres que a sua própria razão lhe formula. Neste sentido, ele não tem um preço, mas uma dignidade, e é por isso que a segunda fórmula do imperativo categórico diz para agirmos de modo a não tratar jamais a humanidade, em nós ou nos outros, tão-somente como um meio, mas sempre pelo menos também como um fim em si. É o que Tugendhat chamaria uma ética do respeito à pessoa. Não quero e nem posso, aqui, entrar em mais detalhes sobre essas três correntes éticas, mas gostaria de ressaltar que a terceira, a kantiana, é extremamente moderna. A ética do dever é moderna porque confia no homem, na sua razão e na sua liberdade. É a ética do homem empreendedor, e nisto coincide com o surgimento e a ascensão da sociedade industrial e capitalista. Ela é estranha ao capitalismo consumista, na medida em que não dá grande valor ao gozo dos prazeres, acentuando privilegiadamente os deveres. A felicidade de que Kant fala é a da consciência do dever cumprido. A tranqüilidade da boa consciência. E se ele fala na busca dos bens materiais é porque considera que ser feliz, neste aspecto, é um dever do homem, uma vez que um homem frustrado faz mal a si e aos outros. Temos, pois, até uma obrigação de tudo fazermos para ser felizes, desde que seja tudo o que poderia ser universalizável, dentro do respeito aos demais. Não é a felicidade a qualquer preço.

A fé moral na imortalidade é necessária para que se admita uma vida depois da morte onde existiria recompensa (dado que nem sempre a virtude é premiada com felicidade). A existência de Deus se faz necessária porque é preciso explicar um mundo onde o ideal e o real – o que é e o que deve ser – não são separados. Mas o legislador e criador dos valores morais supremos é o espírito humano, onde reina o imperativo categórico.

2. A felicidade na imanência

2.1. A felicidade moderada – Aristóteles

Aristóteles menciona três vidas possíveis para os homens: a vida de riquezas, que ninguém gostaria de buscar por ela mesmo; a vida ativa e política, na qual o homem pode exercer sua virtude prática na comunidade de seus semelhantes, mas sem conhecer o ócio nem a auto-suficiência; e, finalmente, a vida de contemplação, que, segundo ele, é a mais elevada que pode viver a parte mais nobre do homem, pela qual ele se assemelha a Deus e se imortaliza, não no sentido de uma imortalização individual mas antes o de uma assimilação a uma inteligência impessoal.

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles refuta as definições de felicidade concebida como prazer, riqueza, honraria e critica a tese filosófica que faz da virtude a condição de felicidade. Prova disso é que um homem virtuoso pode muito bem passar a sua vida sofrendo os piores infortúnios. Define então felicidade como fim mais digno e completo de ser buscado, em vista do qual todos os nossos atos são realizados, sendo jamais desejada em vista de outra coisa. Se a felicidade fizesse parte desses bens que buscamos, em vista de outra coisa, ela não seria em nada algo perfeito e que se basta a si mesmo.

Para Aristóteles a felicidade é um bem comunitário, afinal o homem é definido como um animal político, e a busca do soberano bem depende da política. Quando Aristóteles, na Ética a Nicômaco, começa a examinar o que é a virtude, a fim de precisar a natureza da felicidade, ele afirma que o verdadeiro político é aquele que se entregou a tal estudo, dado que seu objetivo é fazer com que os cidadãos sejam virtuosos. Contudo, para se entregar a tal estudo, é necessário que o político possua algum conhecimento da alma, a fim de determinar quais são sua virtude e sua atividade.

A questão é: como saber se o que estamos buscando e parece ser um bem, não é apenas aparente e sim um bem verdadeiro? Aristóteles sugere a moderação que permite compreender bem em que sentido a virtude moral é a excelência da parte desejante, isto é, em que sentido a virtude do caráter diz respeito aos prazeres e aos sofrimentos. O justo meio é uma arte aprendida desde a infância que requer o contínuo exercício de não ceder a nossos temores, sofrimentos e prazeres, e, para tanto, precisamos ser prudentes. É habituando-se a obedecer às prescrições de seu educador que a criança habituará sua parte desejante a obedecer à sua parte propriamente racional, o que ganhará todo o seu valor quando, chegado o momento, sua razão a governar. Assim a decisão passa a ser não meramente motivada pelo desejo, mas também pela deliberação racional, virtude intelectual.

Ora, só poderá estabelecer uma relação de equidade, aquele que tiver uma relação de amizade com seus concidadãos. Pode o sábio, supostamente o mais feliz dos homens, ser um homem solitário? O homem mesmo que se entrega à contemplação, não se basta a si mesmo, ele pensa noutra coisa que não nele mesmo, donde a necessidade de ter amigos e de partilhar nossa vida com eles, pois assim poderemos quase autocontemplar-nos ao contemplar as ações virtuosas de nossos amigos. Para sermos felizes não podemos viver sem amigos.

2.2. A felicidade preparada – Epicuro

Epicuro tem a preocupação de encontrar os caminhos que podem levar o homem a ser mais feliz. A felicidade está na busca do prazer, o que não significava busca de prazer sem limites. Epicuro alerta para as consequências dos prazeres e também para a diferença entre os prazeres imediatos e os prazeres duradouros, que considera mais intensos e que devem ser conquistados a longo prazo. Isso significa que o homem tem a capacidade de planejar sua vida e, por conseqüência, seus prazeres.

Epicuro não se refere aos prazeres dos sentidos, ou seja, da carne. Valores como o autocontrole, a temperança e serenidade, as sensações em relação às artes e, principalmente, o sentimento da amizade, são motivos de grande prazer. Mas para viver bem e com prazer o homem não pode ter medo. Nem das coisas ruins e nem das coisas boas. Portanto, para Epicuro a filosofia é o remédio que tira o medo do homem: medo da morte; medo dos deuses; medo da felicidade; medo de suportar a dor. Mesmo que para isso o homem tenha que se afastar um pouco da sociedade, para viver em um lugar onde não haja tantos problemas e preocupações.

Para Epicuro, o remédio que vai curar o homem dos males que o afligem, ou seja, dos seus medos, é a filosofia. A doutrina filosófica epicurista vai dizer ao homem o quádruplo remédio que o possibilitará ter uma vida serena e prazerosa: não há o que temer quanto aos deuses; não há nada a temer quanto à morte; pode-se alcançar a felicidade; pode-se suportar a dor, conforme Epicuro cita na Carta a Meneceu.

Encontramos em Epicuro, uma proposta de busca de felicidade baseada na razão e no amor, calcada no conhecimento filosófico, e na imperturbabilidade e serenidade do homem diante das adversidades, tanto pessoais quanto sociais. Para suportar a dor individual é preciso ter em mente os prazeres vividos no passado. A memória tem então, um papel fundamental dentro da ética epicurista, não só como possibilidade de reviver os momentos felizes, mas também de preservar o saber adquirido através da filosofia e, conseqüentemente, a liberdade dela advinda. Daí a importância de ler, escrever e conversar sobre filosofia. Manter acesa a sabedoria, principalmente através da amizade que se cria através de diálogos verdadeiros e uma convivência harmoniosa.

Para suportar a dor social, Epicuro recomenda o afastamento da política e mazelas que dirigem um mundo determinado pelo medo, pelas injustiças, pela pobreza, enfim, pela morte; e a edificação de uma cidade interior, livre das ilusões e das crendices e por isso, serena e livre. O homem deve escolher entre felicidade ou política. É a oposição entre ética e política para a construção de um projeto pessoal de substituição do mal pelo bem.

Para Epicuro, é perfeitamente possível ser sereno e feliz em momentos de extrema adversidade. Basta usar o remédio certo, no caso, a filosofia. Essa visão nos remete a uma atividade curativa e libertadora da filosofia, pautada na lógica, na física e na ética, sendo as duas primeiras, auxiliares da terceira na construção do entendimento e na vivência da felicidade.

Não temer os deuses significa eliminar da vida humana temores e crendices. Os deuses de Epicuro não participam dos conflitos humanos, vivem a felicidade eterna, sem necessidade de julgar, condenar ou absolver, por isso, não devem ser temidos.

Não temer a morte significa que não se deve temer o que não está presente e que quando estiver não estaremos mais aqui. Portanto, a morte para Epicuro é a privação da sensibilidade, o que significa que não podemos senti-la. Sofrer ao esperá-la constitui um erro e consequentemente a perda da serenidade.

Poder alcançar a felicidade parte do pressuposto que o homem tem a vocação para uma vida feliz. Não se deve privar dessa possibilidade pelas doenças do corpo ou da alma. Não sofrer no corpo, não ter a alma perturbada é a fórmula epicurista da felicidade. É preciso transformar o tempo de vida em tempo de felicidade. E a felicidade está exatamente no prazer e na serenidade.

Poder suportar a dor completa o tetraphármakon epicurista, mostrando que, se a dor existe, deve ser curada, afastada através de mecanismos que o próprio homem possui. Quando a dor é física, dever ser eliminada com a rememorização de uma situação prazerosa do passado ou uma esperançosa do futuro. Isto se dá no refúgio ao mundo interior, subjetivo e livre do tempo e do espaço. Quando a dor é da alma, devem ser revistos os valores que orientam a vida. Após esse redirecionamento e consequente eliminação de falsos temores, recupera-se a saúde mental e a dor desaparece.

Inspirado em Demócrito, Epicuro apresenta em sua física algumas novidades que possibilitam as mudanças que viabilizam uma ética não determinista. Ao supor que os átomos possuem apenas qualidade intrínsecas à sua forma, com peso e grandeza, e ao afirmar que essas qualidades mudam sem alterar a constituição do átomo, ele possibilita o redirecionamento da vida interior do homem sem que isto represente na perda da sua normalidade. É no movimento contínuo dos átomos e no vácuo criado pelo espaço entre eles sem oferecer resistência que Epicuro explica o movimento encadeado dos corpos. O desvio (clinamem) dos átomos possibilita os choques. Então Epicuro quebra a rigidez da fatalidade, privilegiando o processo de liberdade que pode levar à felicidade.

Epicuro acreditou em uma felicidade que flui de dentro do homem e, portanto, edifica-se a partir de um processo de libertação interior que exclui da vida o medo e a dor. Vivemos presos, temos medo e sentimos dor. Estamos impossibilitados pelo tempo e pelo espaço. Diante das adversidades do mundo, o epicurismo propõe a edificação da “cidade interior”, onde nenhum tirano pode entrar, onde não existam limites ou imposições a não ser as ditadas pela própria razão, soberana e independente. Embora pareça uma fuga, uma acomodação, o epicurismo nos remete a uma preparação. A um movimento revolucionário onde o principal objetivo é assumir a verdadeira natureza humana, livre, autônoma e criativa. Essa revolução interior prepara uma revolução maior, onde a harmonia será uma realidade e a justiça uma possibilidade. E os homens viverão como os deuses, sábios e felizes: serenos e com um imenso prazer.

2.3. A felicidade resignada – Sêneca

Sêneca, em sua filosofia, procura responder a pergunta pelo que seja o bem viver e, para isso, parte da filosofia estóica. Para respondê-la há que se buscar um fundamento que para os estóicos e para Sêneca será dado pela natureza humana. Para os estóicos a natureza é tanto o que está contido no mundo, quanto o que produz esses elementos, por isso dizer-se que a natureza é já um modo de ser, um modo de ser que traz em si o impulso, o germe do que existe na natureza, trata-se de uma natureza animada, que faz geminar ela mesma. A natureza é tida também como um sopro artesão, um fogo artista que não só a anima, como também lhe dá uma ordenação, ou seja, a natureza não é apenas um modo de ser que traz em si o impulso da produção de si mesma, mas se trata de um impulso que é artesão, logo, não se trata de um mero fogo, de um sopro qualquer, porém de um sopro que esculpi, que dá uma determinada forma, que ordena. A natureza estóica é tal que engendra a si mesma a partir de uma certa racionalidade, por isso, pode-se afirmar também que há em todas as coisas existentes na natureza uma certa ordenação, uma certa racionalidade. Em sendo assim, seguir a racionalidade que há na natureza, seguir a ordenação que há na natureza é, em certa medida, seguir não uma natureza que é estranha ao homem, mas é seguir não somente a própria natureza humana, como é também seguir essa natureza universal na qual o homem, como todas as coisas existentes, está integrado. Por isso, afirmarem sempre os estóicos a importância de seguir a natureza, com o que Sêneca não poderia deixar de concordar:

“… como todos os estóicos, saibas que sigo a natureza” é sábio não se distanciar dela e obedecer a seu exemplo e lei. A vida feliz é, pois, aquela adequada à natureza…”( Sêneca, A vida feliz. III. p. 27)

Quem nos ensina a agir conforme a nossa própria razão, conforme a nossa própria natureza, quem nos exercita nessa ação conforme a nossa natureza racional é justamente a filosofia. Mas se é a filosofia quem nos ensina os meios, os caminhos para vivermos segundo nossa natureza racional, se fará necessário saber qual seja o modo de vida que nos sugerirá essa razão natural. O problema posto, então, é sem dúvidas o do viver bem, ou, como deve agir o homem para que tenha uma vida boa, problema este que implica uma nova questão, ou, que pode ser reformulado em uma outra questão, isto é, qual o bem último do homem. Trata-se aqui de identificar qual seja o bem que procurado por ele mesmo, e em vista do qual todos os demais bens são procurados, possibilitará a articulação de um modo de vida que seja o mais adequado à natureza do homem, ou, que possibilite o viver bem.  Para Aristóteles também existem bens que são procurados por eles mesmos, como aqueles que o são em vista de outros bens, contudo, existiria um único bem que é procurado pelos homens por ele mesmo e, em vista do qual todos os demais também o são, esse é o bem último, no caso de Aristóteles, a eudamonia, o bem-estar. E, será no horizonte desse bem último que se pensará no melhor modo de vida para os homens. Para Sêneca, e para os estóicos, uma vez identificado esse bem, que deve ser conforme a natureza do homem,  será possível conceber um modo de vida para os homens, onde o viver bem seja alcançado, onde a vida feliz seja possível. E, desta busca também irá nos falar Sêneca:

“Eu busco o bem do homem, não o do estômago, como é provável ocorrer nos animais e nas bestas incapazes.” (Sêneca, Vida Feliz. IX. p. 36)

Esse bem, adequado a satisfazer a natureza do homem, pode ser tido como a virtude. Não exatamente como um fim, como um bem último a ser alcançado, mas, como uma qualidade para a ação humana, como um conteúdo para a ação humana, isto é, a ação humana não deve somente ser aquela que se dá em vista da virtude, mas deve ser aquela que é já virtuosa, é a ação na virtude que levará o homem ao viver bem.

Ação virtuosa e ação segundo a razão se identificam, assim a ação virtuosa é a única ação adequada para os homens, a única capaz de permitir-lhes uma vida boa, já que é a única a partir da qual nos orientamos pela natureza universal, e, é a única, portanto, que possibilita a tranqüilidade da alma, estado essencial da vida feliz.  A ação virtuosa nos protege de uma agitação na alma, nos protege de uma desmedida nas ações, que pode nos causar danos, nos protege do desassossego, da insatisfação, nos protege das ações motivadas pelas paixões.

Quando levados pelas paixões os homens deixam de possuir, para serem possuídos pelas suas próprias propriedades. É o que ocorre quando o homem, levado pelas paixões passa a cuidar demasiado do corpo, tornando-se escravo do cuidado com o próprio corpo, ou ainda, quando levados pelas paixões os homens tornam-se ávidos de novidades, sem reterem qualquer uma das coisas com as quais tenham tomado contato. Sêneca esclarece:

“… não é pobre quem tem pouco, mas sim quem deseja mais. Que importa o que temos no cofre, ou nos celeiros, quantas cabeças de gado ou quanto capital a juros, se fizermos as contas não ao que possuímos, mas ao que queremos possuir? Queres saber qual a justa medida das riquezas? Primeiro: aquilo que é necessário; segundo: aquilo que é suficiente!” (Sêneca. carta  02, 6. p. 04)

O homem guiado pelos seus desejos, pelas suas paixões, considera como um bem, por exemplo, a busca desmedida pelas riquezas, um cuidado excessivo com o corpo, ou, um gosto desenfreado pelo novo, é da servidão das paixões que Sêneca defende o distanciamento. Somente a alma liberta das paixões, que não se deixa guiar pelos excessos e pelas agitações externas, poderá alcançar o viver bem, poderá alcançar a tranqüilidade de alma, sem a qual a vida feliz não é possível.

Há um estado que precisa ser buscado para que o viver bem se realize, esse estado é o de tranqüilidade da alma, contudo essa tal tranqüilidade somente é possível quando o homem, guiado pela razão, tem como conteúdo de suas ações a virtude, realizando sua natureza e libertando-se da servidão das paixões, ou, libertando-se das afecções causadas pela fortuna. Para tanto, Sêneca considera necessário um específico movimento da alma, do homem, um movimento de retorno a si, tomando-se a si, um reivindicar-se a si mesmo. É o movimento pelo qual o homem se afasta do índice das massas, é por meio dele que o homem abandona as opiniões generalizadas e o guia das paixões, logo, somente o homem que reivindica-se a si poderá agir conforme a sua natureza, poderá agir conforme a razão e alcançar o estado de alma tranqüila. Esse por à si a razão como guia, vivendo na virtude e conforme a natureza, abandonando as paixões, proporcionando à alma humana a tranqüilidade necessária são elementos definidores do que seja o modo de vida adequado para os homens, o modo de vida suficiente e eficaz para proporcionar ao homem o viver bem:

“Então, feliz o homem dotado de reto juízo; feliz quem se contenta com seu estado e condição qualquer que seja, e aprecia o que é de sua posse; feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida.” (Sêneca, cartas. IV. p.  31)

Sêneca está propondo ao homem uma espécie de apatia diante dos acontecimentos, a qual envolve uma profunda aceitação da sorte que cabe a cada um, uma espécie de sujeição ao destino, mas uma sujeição que pressupõe assentimento. É essa profunda aceitação da sorte o que exige o estado de tranqüilidade da alma, porém, tanto essa profunda aceitação da fortuna, quanto o estado de alma tranqüila somente são possíveis se o homem estiver liberto das paixões, somente se as paixões não forem um guia para suas ações. O homem guiado pelas paixões não é capaz de aceitar o destino, o que torna intranqüila sua alma, porque a torna desejosa, tornando infeliz o homem. Por outro lado, o homem que se guia pela razão, ou seja, o homem que assenhorou-se de si e segue a natureza universal, porque não está sob o julgo das paixões, é capaz de suportar qualquer adversidade, percebendo-a como um movimento dessa natureza universal da qual ele faz parte, não padecendo com o destino, mas consentindo em sujeitar-se a ele, mantendo tranqüila sua alma e nisso alcançando o bem-estar e a vida feliz. Logo, o bem-estar não se traduz em uma vida de prazeres, mas em um estado de ânimo, em outras palavras, o estado de calma, o estado de alma tranqüila.

O único modo de vida adequado ao homem é aquele segundo a razão, para o qual exige-se uma tomada de si, que afasta o homem das agitações externas e das paixões, mantendo tranqüila a alma, e, capacitando-a a manter-se inabalada diante das adversidades, viva de tal modo que perceba que as coisas que afetam o homem, que angustiam o homem, o fazem ou por exagero dos homens, ou por antecipação, ou pela imaginação. Em outras palavras, se não for o caso de praticar um assentir com o destino, deixando-se levar por ele, o mesmo ou semelhante resultado se obterá, se perceber o homem que as coisas que os angustiam, muitas vezes, são ilusórias, ou passageiras, ou que não implicam em um grande padecimento.

Para um estóico como Sênceca, a ação conforme a natureza, a ação temperada, a ação ordenada, que leva ao estado de alma tranqüila é somente aquele que afasta as paixões, que nega as paixões, que abandona as paixões e pauta-se somente pela razão. Logo, se para os cristãos a ação temperante é aquela que, visando à quietude de ânimo, ordena as apetências do sensível, moderando-as, de outra parte, para um estóico, a ação temperante é aquela que, visando a tranqüilidade da alma, abandona as paixões, guiando-se somente pela razão. O que temos então é a explicitação de que, cristãos e estóicos parecem querer um mesmo resultado, ambos parecem propor a vida na virtude como o modo de vida mais adequado aos homens, no entanto, não só o meio de alcançar uma ação virtuosa é distinto, como, sobretudo, o próprio conteúdo do que seja a ação virtuosa é diverso. Inegável é, todavia, a pergunta comum, qual seja, a pergunta pelo viver bem.

3. A felicidade na carência

3.1. A felicidade negada – Schopenhauer

As conseqüências de nossos atos jamais correspondem a nossas esperanças, e mesmo, numa escala maior, a história, longe de ser o veículo do progresso, reduz-se a uma sucessão monótona de decepções e sofrimentos. Na filosofia de Schopenhauer, a felicidade não é conseqüência da virtude. A vontade é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana e, ao mesmo tempo, é a fonte de todos os sofrimentos. A vontade como um querer viver irracional e inconsciente é um mal inerente à existência do homem. O que se conhece como felicidade seria apenas a interrupção temporária de um processo de infelicidade e somente a lembrança de um sofrimento passado criaria a ilusão de um bom presente. Para Schopenhauer, não existe satisfação durável e a felicidade é ausência de dor. Viver é sofrer.

Todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e prazer, e mantemos a esperança de sua concretização, até que o destino nos mostra que nada é nosso. O presente e o futuro dependem do destino. A experiência ensina-nos que a felicidade e o prazer não passam de uma quimera, mostrada à distância por uma ilusão, enquanto que o sofrimento e a dor são reais e manifestam-se por si só, sem a necessidade da ilusão e da espera. Se aprendermos com o sofrimento, deixaremos de procurar a felicidade e o prazer e passaremos a preocupar-nos apenas em fugir ao máximo do sofrimento e da dor.

Schopenhauer cita que “A vida oscila como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio”, inspirado no ensinamento de Buda acerca do desejo e da natureza impermanente de todas as coisas, expressando assim sua conclusão de que a vontade é uma força cega que jamais será inteiramente satisfeita. O homem só pode se libertar desse sofrimento pela negação da vontade. Vontade que, para Schopenhauer, é a essência mais íntima do homem. Vontade como força originária homogênea, que se manifesta em toda a natureza  (nos vegetais, na gravidade, no fenômeno de repulsão e atração dos materiais), que se cinde nas muitas vontades. Vontade que é tendência, necessidade, aspiração, é o querer-viver, absurdo, sem razão e sem finalidade, que engendra sempre novas necessidades e, com elas, novas dores, pois “viver é sofrer”. Schopenhauer está convencido de que a inutilidade da vontade não é irremediável e que encontramos a salvação retirando-nos do mundo para observá-lo do exterior. Mas sendo a vontade a realidade fundamental, como é possível nos separarmos dela? Acalmá-la é possível pela via da arte e da moral.

Pela arte o homem se afasta de seus desejos e de suas necessidades, deixando de olhar as coisas em função da utilidade e de seu egoísmo, motivo principal da conduta humana. Na experiência estética o homem não é mais consciente de si mesmo, tornando-se puramente contemplação. Contudo os momentos felizes de contemplação são breves e raros o que leva o homem a outro caminho.

Pela moral, mais especificamente pela compaixão que a fundamenta, o indivíduo se identifica aos sofrimentos dos outros e age não mais, apenas, por interesse próprio. Não se trata de sucumbir à ilusão de sentir em nosso próprio corpo as dores do outro. Ao contrário, a compaixão consiste em sentir o sofrimento do outro em sua pessoa. Seja como for, nesse sentimento a diferença entre nós e ele se mostra menos pronunciada do que de costume, quando agimos de forma puramente egoísta.

Mas nem mesmo a ética da piedade possibilitaria ao homem atingir a felicidade última, já que a única forma de salvação para o homem poderia ser encontrada na renúncia ao mundo e todas as suas solicitações possíveis, na fuga para o nada. O não-ser seria decididamente melhor que o ser.

3.2. A felicidade afirmada – Nietzsche

Ao sentimento com que o poder se engrandece, com que se vence uma resistência, Nietzsche define como felicidade.

“O que é felicidade? – O sentimento com que o poder se engrandece, – com que se vence uma resistência.” (O Anticristo, p. 14)

Se para Schopenhauer a essência fundamental da existência é a vontade de viver, para Nietzsche essa essência é a vontade de poder, que antecede ao instinto de conservação (vontade de viver).

“Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação como impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder – a autoconservação é apenas uma ds indiretas, mais freqüentes conseqüências disso.” (Além do Bem e do Mal, p. 20)

Esta vontade foi vista como ruim por toda a tradição. Renegar à ambição é negar a própria vida, visto que ela faz parte da natureza humana  e graças a ela torna-se possível o aperfeiçoamento humano. Desta forma, a vida como vontade de poder é uma vida de lutas, confronto, fadigas, dominação, guerras, vitórias e derrotas, glórias e tragédias, e está presente em todos os acontecimentos da existência.

“(…) a teoria de uma vontade de poder operante em todo acontecer.” (Genealogia da Moral, p. 82)

A vontade de poder é uma espécie de a priori da vida, que determina luta interessada pela dominação. Luta entre homens, uns querendo impor-se a outros. E é precisamente isto que faz a vida crescer e evoluir. A competição, a inveja e a ambição são vistas aqui positivamente. Assim, para Nietzsche, é preciso existir hierarquias e, por conseqüência, a desigualdade. A liberdade de uns é retirada em nome da liberdade de outros, mais especificamente, dos melhores, dos mais nobres, dos aristocratas, considerados por Nietzsche como os bons e não os ruins.

Uma vida fundada nos ideais de fraternidade e igualdade é uma vida decadente, é uma vida de fracos (escravos) que se submetem à moral dos dominantes (senhores). Os primeiros detém as forças negadoras da vida (valores cristãos), enquanto que os outros detém, as forças afirmadoras (valores nobres). Beleza, alegria, instintos, embriaguez dos sentidos, orgulho, autonomia, coragem, inteligência riqueza, são valores da afirmação da vida. Culpa, ressentimento, pobreza, desinteresse, igualdade, são valores da negação da vida. A moral aristocrática será, assim, a expressão ética da vontade de poder.

Os valores aristocráticos de afirmação estão em constante contradição com os da moral altruísta, da renúncia de si, do amor ao próximo, da compaixão e da piedade. A piedade é na verdade a humilhação do próximo, é boa para os outros, jamais para si mesmo. O amor de si é mais importante para o próximo do que a piedade. O próximo enquanto tratado com misericórdia é o fraco, o que está excluído da disputa, da luta.

“Sinto-me envergonhado de ter visto sofrer o que sofre, devido à vergonha dele; e quando corri em seu auxílio, feri-lhe gravemente o orgulho.” (Assim Falou Zaratustra, p. 66)

A moral afirmadora de Nietzsche pode ser considerada como um expressão de claro egoísmo, todavia não significa acomodação. O indivíduo não deve viver suas comodidades privadas alheio às lutas, às guerras, ao mundo. Ele deve viver dionisiacamente por um “alto e nobre para quê?” Trata-se de dar um sentido grandioso à existência, singular, nobre, distinto.

A moral egoísta aristocrática busca a felicidade, mas, para Nietzsche, antes dela está a construção de uma obra, mesmo que o enfrentamento do sofrimento seja uma necessidade como meio de enobrecimento e de aperfeiçoamento do ser.

“Que importa a felicidade? (…) Há muito tempo que deixei de aspirar à felicidade; aspiro à minha obra.”(Assim Falou Zaratustra, p.179)

O gênio deve sofrer muito para tornar-se um gênio e esta é uma das razões porque grande parte das pessoas não desejam ser gênios. A vida mesma, seu eterno retorno, sua garantia e crescimento, implica sofrimento.  O povo grego tinha uma sensibilidade extremada para a dor e foi o maio de todos os povos. Tanto maior o sofrimento de um indivíduo, maior sua nobreza de espírito. Poetas, escritores, artistas, filósofos, amantes extraem de seus mais duros sofrimentos poesias, romances, conhecimentos, mais amor.

“Vocês querem, se possível – e não há mais louco ‘possível’ – abolir o sofrimeto; e quanto a mós? – parece mesmo que nós o queremos ainda mais, maior e pior do que jamais foi! Bem-estar, tal com vocês o entendem – isso não é um objetivo, isso nos parece um fim! Um estado que em breve torna o homem ridículo e desprezível – que faz desejar o seu ocaso! A disciplina do sofrer, do grande sofrer – não sabem vocês que até agora foi essa disciplina que criou toda a excelência humana?” (Além do Bem e do Mal, p. 131)

O sofrimento é reivindicado por Nietzsche não como uma renúncia de si e da vontade. A vida comporta, naturalmente, o sofrimento e o nobre por estar no primeiro posto, encarregado do comando, se expõe mais aos perigos. Renúncia acontece quando o indivíduo nega uma parte fundamental da vida que é o sofrimento, negando a própria  vida na terra e criando um mundo além. Só pode ser grande quem sofre. Mais do que a felicidade, o que importa é o impulso para o heróico, o trágico-dionisíaco. A vida de um homem só tem sentido quando ele é capaz de viver e morrer por um “alto e nobre para que”.

3.3. A felicidade condenada – Rosset

Rosset, como Schopenhauer, expõe a idéia de que o homem é incapaz de suportar a realidade em sua dimensão essencialmente trágica e dolorosa. A filosofia ocidental inventa certezas metafísicas e religiosas pela incapacidade humana de tolerar a crueza e unicidade do real. O termo realidade não é, na história da filosofia, um conceito prestigiado. Os filósofos falam de razão, liberdade, idéia, finalidade…, mas a realidade lhes parece indigna de assunção filosófica.

Em Princípio da Crueldade, Rosset, apresenta a noção de crueldade, não no sentido sádico (gostar de fazer sofrer) ou masoquista (gostar de sofrer). Significa afirmar o que é, mesmo que isto seja enunciar a verdade desconfortável do real: única e inapelável.

As fórmulas “princípio de realidade suficiente” e “princípio de incerteza” formam os dois pilares de sua “ética da crueldade”. Viver segundo essa ética é conformar-se com um desabrigo metafísico: a filosofia é apenas uma mirada que interpreta o real, mas não acrescenta a ele nenhuma verdade certa ou segura. O papel da filosofia, segundo Rosset, é higiênico ou negativo: afastar as “verdades” que visam ocultar a crueldade ou crueza do real.

Rosset tematizada a alegria em sua mais alta potência, como expressão direta e inocente de uma radical adesão ao viver, como experiência de uma plenitude que, bastando-se a si mesma, é capaz de celebrar o aspecto efêmero da vida, sua finitude, seu teor sempre-cambiante. Esse gozo incondicional da vida revela-se como rigorosamente impensável para uma tradição filosófica que, de Platão a Heidegger, preconizou o afastamento desta existência fugidia como via de acesso à verdadeira felicidade, freqüentemente associada a um desejo de imobilidade, de eternidade, de imortalidade. Ora, a alegria de estar vivo não cessa de escapar a toda a argumentação e, como força maior que atravessa a obra de Nietzsche, implica um conhecimento trágico, uma aceitação integral dos aspectos perigosos, problemáticos e enigmáticos da existência, expressando-se, em termos nietzschianos, como beatitude e amor fati diante de tudo o que existe e nos acontece. tudo o que existe e nos acontece

CONCLUSÃO

Na análise do conceito de felicidade, vimos ser quase obrigatório pensarmos o conceito de desejo ou de vontade, associados ao conceito demasiadamente humano de sofrimento. A escolha entre o sim e o não que responde à pergunta sobre a viabilidade da felicidade passa, impreterivelmente, pela discussão em torno do tema do desejo e da dor. É daí que nasce o conflito e a contradição de querer ser feliz num mundo sem tempo e espaço para a felicidade.

Todos os seres humanos buscam felicidade, que, segundo grande parte das filosofias aqui abordadas, consiste na satisfação plena dos desejos. Surge o primeiro paradoxo: o desejo que é caminho para uma felicidade, é morada do sofrimento pela falta, carência e ausência do próprio estado feliz.

Na teoria a solução para o impasse é tranqüila. Basta suprimir a vontade, o querer, o desejar. Mas é possível não desejar? Mesmo regredindo no tempo e fazendo de conta que não vivemos ainda no mundo do apelo ao consumo, teremos profundas dificuldades de extirpar a vontade de nossas vidas. Vimos que filósofos aqui abordados seguiram algumas sabedorias como o epicurismo, o estoicismo, e o budismo, na tentativa de vencer este paradoxo. Ao que parece o desejo é algo intrínseco à natureza humana.

Platão, com o qual se aproxima Schopenhauer (apesar de tudo que os afasta) no sentido de não identificar a felicidade como um bem alcançável neste mundo, projeta uma felicidade a partir de um processo de libertação. A felicidade no mundo em que vivemos é impossível. A plenitude e o esplendor só poderiam ser acessíveis no mundo inteligível, após a morte, já que o desejo de um felicidade imortal, presente no amor terrestre, indica-nos o despojamento do corpo. A filosofia, mais especificamente, a sabedoria é a via de promoção da felicidade, que para Platão poderá ser contemplada no mundo das Idéias, quando a alma deixar de ser prisioneira do corpo. Schopenhauer aqui se afasta de Platão. Longe deste idealismo, para ele não há mundo fora e, portanto, a felicidade é uma impossibilidade.

Agostinho é “o fiel escudeiro de Platão” no sentido de idealizar um mundo feliz, além do mundo terreno, capaz de abarcar todo o nosso desejo de felicidade. Para isso, no aqui e agora, temos que sofrer para purificarmos a alma do pecado originalmente contraído. Kant, também dualista, não destitui a possibilidade de uma felicidade após a morte, junto de Deus, mas, para isso, atrela a felicidade ao cumprimento de um dever moral, denominado de imperativo categórico.

Já para Aristóteles a felicidade é possível pelo exercício das virtudes e a amizade entre os homens é uma demonstração de condição de possibilidade para a felicidade. A felicidade se concretiza através de prazeres ponderados pelo conhecimento e pela filosofia.

Longe de Platão e mais próximo de Aristóteles está Nietzsche, defendendo a virtude como já sendo a própria felicidade. A virtude do herói que faz do sofrimento um elemento para a auto-superação. E, assim, Nietzsche tenta corrigir Schopenhauer  ao criar a moral do senhor como única capaz de fazer do sofrimento um bem necessário à felicidade, à criação. Pela vontade de poder Nietzsche abre caminho para sermos felizes neste único mundo possível. Felicidade é poder e poder é criar. Criar uma vida feliz. Uma bela obra.

Pensar a viabilidade de uma felicidade absoluta só mesmo fora deste mundo, o que significa ser necessário a existência de um outro mundo nesse fora. E, para que nesse outro mundo não sejamos acometidos pelo tédio, conforme Schopenhauer, é preciso continuar desejando, o que implica em sofrer. Contudo, talvez seja uma nova forma de desejo, desconhecida pelos ditames da razão mas, quem sabe, permissível a partir da fé.  Como em Kant, pensar a imortalidade só pela razão é antinomia, mas, talvez venha resolver o problema dos que esperam por uma felicidade absoluta. Esperar também é uma profissão de fé.

Está no paradoxo do desejo as dificuldades para a concretização da felicidade no mundo em que vivemos, no qual nos reconhecemos como humanos e, portanto, portadores do desejo de ser feliz. Assim é humanamente impossível não desejar, pois é impossível suprimir o desejo.  O mesmo desejo que é via da felicidade é via de sofrimento e infelicidade. É pelo desejo que chegamos à felicidade. É desejando coisas, inclusive desejando ser feliz que vamos construindo a felicidade. Ao mesmo tempo é no ato de desejar que encontramos as barreiras para alcançarmos a felicidade. Enquanto desejamos sofremos de carência, falta e frustração.  Então ser feliz neste mundo só mesmo uma felicidade limitada o que implica em assumirmos o papel de heróis trágicos, ao modo dionisíaco, conforme Nietzsche. A verdade dionisíaca compreende aceitar a existência e as dores da morte e do sofrimento, sem a pretensão da redenção divina.  Uma espécie de suportamento. A questão que fica é como criar uma obra, inventar a felicidade fruto do meu desejo, sem reprimir a pretensão de felicidade do outro?

BIBLIOGRAFIA

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Filebo, Platão

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Confissões, Agostinho

Crítica da Razão Pura, Kant

Crítica da Razão Prática, Kant

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_________. Da tranqüilidade da alma. Trad. Guilio Davide Leoni. 1.ed. São Paulo: Abril, 1973.

_________. Medéia. Trad. Guilio Davide Leoni. 1.ed. São Paulo: Abril, 1973.

_________. Cartas a Lucilio. Trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991.

_________. Tratado sobre a clemência. Trad. Ingeborg Braren. Petrópolis-RJ: Vozes, 1990

O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer

Além do Bem e do Mal, Nietzsche

Assim Falou Zaratustra, Nietzsche

Genealogia da Moral, Nietzsche

O Anticristo, Nietzsche

O Mal Estar na Civilização, Freud

Felicidade, Desesperadamente, André Comte Sponville

Filosofia e Felicidade, Van Den Bosch

A Felicidade, Robert Misrahi