Um dia nasci, estranhei tanto que chorei
Outro dia cresci, estranhei tanto que ri
Um dia quando criança pensei em ser logo um adulto
Outro dia quando adulto quis voltar a ser criança
Um dia me apaixonei
Outro dia amei de verdade
Um dia achei que não levaria jeito para ser pai
Outro dia troquei fraldas, dei tetéti e com meu filho brinquei
Um dia corri para chegar
Outro dia caminhei para me aproximar
Um dia achei que sabia tudo
Outro dia vi que eu era um mero aprendiz
Um dia arrisquei a saúde para ter muito dinheiro
Outro dia gastei muito dinheiro para ter saúde
Um dia vivi só pro futuro
Outro dia percebi que o futuro jamais pode ser vivido
Um dia pensei que ganharia todas
Outro dia perdi
Um dia achei que desilusões só aconteciam com o vizinho
Outro dia a desilusão batia a minha porta
Um dia achei que todos eram bons
Outro dia vi que a maldade é quase uma prioridade
Um dia pensei em resolver todos os problemas do mundo
Outro dia constatei que mal podia ajudar o meu mundo
Um dia acreditei inconscientemente que seria eterno
Outro dia vi que a vida pode ser eterna, mas, infelizmente sem mim
Um dia endeusei Deus
Outro dia Deus parecia não ser mais tão Deus assim
Um dia busquei explicações para o vacilo da minha crença
Outro dia encontrei as respostas em mim
Um dia vou morrer
Outro dia não haverá para me arrepender
Nada como um dia após o outro.
Taquara na lanterna do desempenho público
A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) divulgou o Índice de Responsabilidade Fiscal, de Gestão e Social (IRFGS) dos municípios brasileiros. Elaborado com base em dados oficiais do exercício de 2004, o índice tem como objetivo avaliar o desempenho das administrações municipais, criando o ranking do desempenho fiscal, administrativo e social. O Índice de Responsabilidade Fiscal mede a relação de endividamento, suficiência de caixa e gastos com funcionalismo. O Índice de Gestão leva em consideração quanto dinheiro público é consumido no custeio da máquina administrativa, incluindo a Câmara de vereadores, e quanto é aplicado em investimentos. O Índice Social mede o acesso da população à Saúde e à Educação. A metodologia utilizada avaliou os municípios numa escala que varia de zero a um. Para o cálculo da média final, a dimensão fiscal teve peso de 50%, a gestão 30% e o social 20%. Uma das conclusões da CNM, ao analisar os resultados do IRFGS é que existe uma relação inversa entre as responsabilidades fiscal e social. “Existe uma tendência dos municípios de focar a atenção para a responsabilidade fiscal e esquecimento social”, diz o presidente da entidade, Paulo Ziulkoski. “E quem cuida muito da saúde e educação acaba descuidando da responsabilidade fiscal”, analisa. Entre os 100 primeiros do ranking, o Rio Grande do Sul se destaca com 39 municípios, seguido por São Paulo (19) e Santa Catarina (14). Dentre estes 39 municípios do Rio Grande do Sul, Três Coroas aparece na posição 35, como único município do Paranhana entre os 100 melhores colocados. Igrejinha aparece na posição 501; Riozinho na posição 1267; Parobé na posição 2315; Rolante na posição 3598 e Taquara na lamentável posição 3944. A chave para o bom desempenho está na eficiência da gestão, que, em síntese, significa administrar com austeridade, gastando apenas o que tem naquilo que é prioridade para a comunidade. Pelos resultados, Taquara e outros municípios precisam aprender muito. E professor tem, é Três Coroas.
Taquara: Ideal versus Real
Taquara está fazendo aniversário. São 120 anos de glória. Glória cantada nos versos do seu hino, composto em 1° de junho de 1970, pelo seu Eldo Ivo Klein e pelo maestro Gustavo Adolfo Koetz, este último já falecido. O hino nos fala também de esperança vibrante, de progresso constante, que me parecem não passam de ilusões, pois a cada dia estão mais distante. Sem pessimismo, mas realismo, não seria uma prática muito honesta considerar Taquara como sendo hoje a mesma que inspirou, especialmente o seu Eldo. Certamente que Taquara não é mais tão formosa nem tão bela, não tem se quer mais praças e perdeu muito de sua graça. Lugar pra ficar, talvez pra morar, pois trabalhar é cada vez mais complicado. Que digam os jovens, basta verificar quantos ficam e quantos saem. Por quê? Porque são cada vez mais raras as oportunidades de trabalho. Indústrias? Estas se foram, principalmente depois da transformação de Parobé, de Distrito Industrial em cidade. Uns dirão que foi um acontecimento natural e inevitável. Outros questionam que a emancipação poderia ter sido evitada e citam exemplos de outras cidades que possuem distrito industrial no qual não é possível o estabelecimento de residências e, assim, não há demanda para o processo emancipatório. Faltou estratégia? É bem provável. E aí, estamos falando de administrações públicas, que não conseguiram preparar o futuro das gerações futuras. Taquara não cumpriu com a promessa expressa no hino, com a grandeza das suas gerações. Além de perder seu Distrito Industrial, as administrações sucumbiram diante do desafio da reconstrução de uma nova planta industrial. Não elaboraram um plano de desenvolvimento sustentável e eficiente para Taquara, que, necessariamente, deveria ter passado pela re-industrialização. Não só constituída de fábricas de calçados, mas também de fábricas de software e de entretenimento, que representam um novo perfil da indústria pós-moderna. Se o futuro de Taquara tivesse sido pensado com visubilidade de longo prazo, provavelmente, hoje seríamos novamente a capital do sorriso, como diz o hino. Sorrir hoje por Taquara está mais para cinismo e ironia. E, assim, Taquara perdeu o lugar de destaque na História. Todavia, muitos não conseguem deixar de gostar desta terra, apesar do esforço de muitos que fazem de tudo para que os taquarenses percam as esperanças na ressurreição da cidade. Quem sabe, Taquara ainda tenha heróis, conforme cita o hino. Só mesmo heróis seriam capazes de resgatar nossas aspirações, no sentido de viabilizarem a grandeza das próximas gerações. Com fé e ardor nos corações e, também, com muita consciência da necessidade das transformações, a população bem que poderia agir no sentido de mudar está triste situação, sentimento vivido principalmente por aqueles que assumem a condição de taquarenses cidadãos.
O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO DE FILOSOFIA
SISTEMAS ÉTICOS – PROF. MÁRCIA TIBURI
O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO
MARCOS KAYSER
São Leopoldo, dezembro de 2005.
O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO
1. Breve síntese do mundo como vontade e representação:
Na obra “Mundo Como Vontade e Representação”, Schopenhauer mostra sua metafísica na qual o espaço e o tempo é governado pelo princípio de razão suficiente; a Vontade é apresentada como a coisa-em si ; e o corpo é o objeto imediato da vontade. Podemos situar Schopenhauer entre o idealismo e o materialismo, no qual o real constitui a representação do mundo externo.
O Mundo como representação se divide em duas metades inseparáveis; o sujeito e o objeto. Nenhum dos dois pode existir nem mesmo pensar-se em si, isto é, independente um do outro. Ser sujeito é formar e ter representações; ser objeto é ser conteúdo de uma representação. Um erro básico para Schopenhauer, portanto, seria aplicar a causalidade a esse eixo sujeito/objeto. A causalidade, como todas as relações e determinações que podemos pensar, vale unicamente para aquilo que foi pensado e, na base de todas essas relações se compreende as formas comum desse “ser objeto.” As formas próprias são como em Kant as formas do espaço e tempo. No pensamento de Schopenhauer, todas as demais funções do pensar são substituídas em favor da causalidade. Schopenhauer desenvolve a distinção kantiana entre o númeno e o fenômeno, mas, por outro lado, situa-se numa posição diferenciada em termos de perspectiva. Em Kant, o fenômeno é a única realidade cognoscível para o sujeito e o númeno (realidade transcendente), é o limite do conhecimento humano. Com o interesse em desenvolver e integrar o pensamento de Kant, Schopenhauer acaba por se distanciar dele. Para Schopenhauer, o fenômeno é pura representação, ilusão (o “véu de Maya”deque fala a filosodia indiana e budista). Por outro lado, tanto para Schopenhauer como para Kant o mundo que conhecemos é o mundo dos fenômenos. O nosso conhecimento é a nossa representação do mundo, pois o objeto conhecido é o objeto como o sujeito apresenta-o a si através de formas subjetivas.
A intuição para Schopenhauer é tida aqui como a fonte única de toda experiência e por conseqüência fonte também de todo o conhecimento. É um erro querer encontrar nos conceitos ou em uma ciência feita de conceitos, algo mais que a expressão abstrata onde encerram nossas intuições, além disso, os filósofos que precederam a Schopenhauer, especialmente Kant, estavam errados querendo alcançar por meio de uma “pretensa intuição intelectual” o conhecimento conceitual que nos conduziria para além do conteúdo da experiência. O caminho que leva ao conhecimento da coisa-em-si não pode se dar por meio da representação. Sob este ponto de vista, dado que o espaço, tempo e causalidade não são mais que formas da nossa representação, elas não podem conter em si a essência do real; esta deve estar fora dessas formas.
Posto que toda multiplicidade só pode ser pensada no tempo e no espaço, a multiplicidade não será senão uma peculiaridade do mundo da experiênica, e o ente real haverá de constituir uma unidade sem diferenças, livre de toda multiplicidade. Sem o espaço e o tempo não se dá nenhuma existência individual; eles são como diriam os escolásticos o principium individuationis. A utilização deste princípio não pode ser confundida, contudo, com uma conclusão epistemológica, mas sim, Metafísica e Ontológica do pensamento de Schopenhauer.
Dentro da experiência possível, observa-se também um grupo de fatos que nos abrem um caminho totalmente singular para o conhecimento da coisa-em–si . O sujeito com sua capacidade cognitiva se re-conhece não só como sujeito de suas representações mas, também, como sujeito do seu querer. A identidade de ambos os sujeitos resulta tão inexplicável como a identidade do mundo dos fenômenos em geral. De qualquer forma, isto é certo, a vontade, tal como se manifesta imediatamente em nossa consciência, está livre da forma da intuição a que chamamos de espaço e, embora ela esteja sujeita a forma temporal, ela está mais próxima da essência, da coisa-em-si, que qualquer outro fenômeno externo que se apresentam à nossa consciência. A vontade é, portanto, entendida como a realidade que sustenta o mundo das representações. Dizer isso é o mesmo que dizer ser possível a explicação dos fatos da experiência externa dos objetos em analogia com nossa experiência interna que possui como conteúdo a vida volitiva.
A vontade está por toda parte. Ela é como que uma raiz, um princípio primeiro do mundo que move o agir humano. Em todos os fenômenos da natureza, da vida dos astros, ao instinto dos animais e mesmo no querer consciente dos homens lá a encontramos a manifestação dessa vontade. Não somos tão livres quanto pensamos, pois, tudo o que acontece, acontece segundo a necessidade. O corpo objetiva a vontade enquanto impulso, infinito, uno e irracional e independe de qualquer individuação. Todo ato real da vontade do sujeito é o movimento de seu corpo o corpo é apenas a vontade tornada visível, é a própria vontade enquanto objeto da intuição. Assim, toda impressão exercida sobre o corpo afeta imediatamente a vontade, onde aparece, então, o prazer e a dor.
Schopenhauer teve suas idéias profundamente influenciadas pela tradição hindu dos Upanishads e pelo budismo. Schopenhauer foi o primeiro filósofo europeu que assumiu publicamente o ateísmo, entretanto, ele admirou no budismo e no próprio cristianismo seu lado ascético. Retirando-se os dogmas estas religiões tem como seu fundamento a abolição da vontade.
A filosofia de Schopenhauer reflete, em seu conteúdo, que na vida humana as dores superam os prazeres e a felicidade é inalcançável. A vida humana é má. O mundo, em sua totalidade é uma manifestação de força irracional como “vontade de vida”. Ele foi o primeiro europeu a falar do mundo como sofrimento, chamando o que nos cerca visivelmente de confusão, paixão, mal. “Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados”(“O Mundo como Vontade e Representação” Livro III Parágrafo 38 Pág. 26). Os seres humanos são as criaturas ativas que se encontram compelidos a amar, odiar, desejar e rejeitar. Os homens possuem o conhecimento de que a natureza é irredutivelmente desse modo. Nem mesmo o suicídio limita a ação da vontade, pois ele é simplesmente uma afirmação da própria vontade. Do ponto de vista positivo é a própria dor que é a essência do mundo.
Em Schopenhauer, encontramos a idéia de que não há nenhum ‘local’ de escape da vontade na natureza, as expressões dela são vistas entorno de todo mundo. Assim os movimentos animais, o desabrochar de uma semente, a força invisível do imã, refletem aquele mesmo impulso fundamental que rege tudo e a todos. A única finalidade da vida é justamente escapar da vontade partindo do apaziguamento das paixões, evitando assim a percepção dos impulsos dolorosos que impedem o alcance do que os hindus chamam de Nirvana. As artes, especialmente a música, a mais elevada das artes, têm uma função importante neste aspecto. Elas podem fornecer um céu provisório no qual se verifica um aspecto da contemplação verdadeiramente positiva. No entanto, a única saída possível para o término do sofrimento está na extinção completa da vontade. De acordo com Schopenhauer, contudo, a vontade não se limita à uma ação voluntária de providência. Toda atividade experimentada pelo ser é incluída entre as funções fisiológicas inconscientes Esta vontade é a natureza interna de cada um que experimenta ser e pressupõe a aparência – no espaço e no tempo – do corpo. Partindo do princípio de que a vontade é uma natureza interna dos corpos como uma aparência no tempo e no espaço.
O mundo da percepção é um espetáculo de incessante mudança no qual se processa a revolução de implacáveis atividades, frutos da vontade.
Schopenhauer conclui que a realidade interna de todas as aparências materiais é a realidade final e universal de todas as coisas. A tragédia da vida surge da natureza da vontade, que incita constantemente o indivíduo para a satisfação dos seus objetivos irracionais. Assim, a vontade conduz inevitavelmente à dor, à tragédia e ao sofrimento num ciclo infinito de nascimento e morte, renascimento etc. Este ciclo de atividade da vontade só pode ser rompido finalmente numa atitude de renúncia em que a razão governa a vontade até o ponto de cessá-la.
Enquanto os filósofos das tradições anteriores à Schopenhauer buscavam em seus trabalhos render tributo à sabedoria divina, a um “arquiteto” criador de todas as coisas em sua maior perfeição , Schopenhauer observa o mundo em seu mistério e imperfeição generalizada. Ele chega mesmo a contrariar Leibniz entendendo que este é o pior dos mundos possíveis, e que este mundo não poderia ser mais mal sem cessar de existir. Apesar de Schopenhauer identificar a realidade fundamental do mundo como vontade, diz ele, nós nos aproximamos da contemplação. Contemplação esta que é tarefa das artes, as quais nos fornecem o relevo provisório para a libertação miserabilidade da existência.
2. Uma teoria do castigo em Schopenhauer:
Para Schopenhauer “a vida não admite nenhuma felicidade verdadeira”. A vida do indivíduo se resume a “esgotar uma série de grandes e pequenas infelicidades”, mesmo que cada um procure escondê-las. Aos otimistas que ignoram esta perspectiva trágica, Schopenhauer sugere levá-los aos hospitais, às prisões, entre outros palcos de dor e sofrimento explícitos. A vida se constituindo nessa absoluta tragédia, logo vem a pergunta se a decisão mais coerente não seria o suicídio. Schopenhauer responde que “o suicídio não desenlaça nada”. Só servirá para re-afirmar a supremacia da vontade. A morte é mais uma afirmação da vontade e o suicídio “é a própria imagem da nossa impotência” diante da vontade. Resta ao homem obedecer à pura natureza, continuar preservando sua própria conservação. E no caminho da auto-conservação e preservação da espécie “há necessariamente guerra eterna entre indivíduos de todas as espécies” e o egoísmo é o princípio de toda esta guerra, segundo Schopenhauer. A vontade apegada ao corpo de quem a armazena, faz com que cada indivíduo seja o centro de tudo, capaz de “aniquilar o mundo em proveito seu”. E desse princípio que Hobbes, reconhecido por Schopenhauer, soube extrair a idéia da guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).
Ao mesmo tempo em que todos os indivíduos humanos abrigam uma índole violenta, eles “têm um dom comum, a razão.” Esta razão diferencia os homens dos animais, que estão “reduzidos a conhecer o fato isolado.” O egoísmo guiado pela razão descobre a necessidade do contrato, da lei, do Estado. Este último não com o fim último de eliminar a inclinação humana ao conflito, mas colocar certos limites que convençam o homem da necessidade da contenção. A possibilidade do castigo é o instrumento utilizado para o convencimento. A ameaça do castigo dá motivos mais fortes para o homem não atacar e reprimir sua inclinação agressiva. O cumprimento dos contratos e das leis não são motivadas por princípios morais, nem éticos, mas pela ameaça do castigo. A punição tem eficiência na contenção de uma falta ou na sua repetição, ou seja, para que a falta, a transgressão não volte a ser cometida. Desta forma o Estado não se contrapõe ao egoísmo. Muito pelo contrário, “esse egoísmo é a única razão de ser do Estado”. O que o Estado precisa evitar são as “consequências funestas do egoísmo”, que se voltariam contra o interesse dos próprios indivíduos. Hobbes, segundo Schopenhauer soube de forma exata identificar na realização do egoísmo a origem do Estado. Junto de Hobbes, Puffendorf, Feuerbach e Sêneca, são pensadores que defendem uma teoria do castigo como instrumento fundamental para policiar o homem. Schopenhauer também argumenta sobre a punição eterna. Ela não teria eficiência como meio de coerção, pois toda e qualquer punição demanda a idéia de tempo, para fixar os termos, decretar o castigo e colocá-lo em prática, sendo que a eternidade é um conceito atemporal, ou seja, fora do tempo. Então, uma eventual punição eterna não teria efeito algum.
Bibliografia:
Schopenhauer. Arthur, O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Contraponto. 2001.
A CO-IMPLICAÇÃO DESEJO E MEDO NA MECÂNICA DE CONTROLE EM THOMAS HOBBES
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO DE FILOSOFIA
FILOSOFIA SOCIAL E POLÍTICA – PROF. CECÍLIA PIRES
A CO-IMPLICAÇÃO DESEJO E MEDO NA MECÂNICA DE CONTROLE EM THOMAS HOBBES
MARCOS KAYSER
São Leopoldo, dezembro de 2005.
A CO-IMPLICAÇÃO DESEJO E MEDO NA MECÂNICA DE CONTROLE
EM THOMAS HOBBES
1. INTRODUÇÃO
“…jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação.” (Leviatã, VI p.64)
Hobbes está dentre aqueles pensadores que causam certa aversão aos que resistem pensar o homem fora do espectro do bom e do belo. Criou-se um imaginário com tendências de enquadrar Hobbes como representante ilustre de uma filosofia perversa. Numa visão maniqueísta, uma filosofia do mal, que trata o homem como mal e perverso. A proposta deste trabalho de investigação não é perseguir indícios que possam levar Hobbes a algum tipo de julgamento, nem tão pouco construir mais uma apologia. A pretensão aqui é identificar os conceitos desejo e medo como constitutivos do homem e, por conseguinte, como componentes necessários da mecânica do poder, engenhada por Hobbes para contemplar a ascensão do homem burguês, como tão bem observa Hanna Arendt1.
Hobbes é um filósofo que pensa as condições necessárias para o homem vencer a morte e sua inexorabilidade no âmbito da política. Se a morte é um tema metafísico e se constitui num problema insolúvel, pelo menos para aqueles que a consideram contraditória frente ao desejo de infinitude, encontramos em Hobbes o alento de filosofar a morte como um problema político e, aí sim, pelo caminho da razão, a pretensão de um “final feliz”. Uma vitória da política sobre a morte. Do cidadão sobre o “homo homini lupus”.
Entendemos que as idéias de Hobbes são pertinentes aos nossos dias. Isso não significa dizer que seu sistema político, construído em outros tempos, em outro contexto, possa ser transportado na íntegra para os tempos de hoje, servindo de solução para problemas de nossa contemporaneidade. Tempo de guerras internacionais e nacionais, tempo de fragmentação de pactos, tempo de impunidades, tempo de um mercado com ares de absolutismo, fazendo às vezes de Estado, tempos em que o interesse público e privado são a mesma coisa como cita Hanna Arendt. Hobbes é atual porque muitos de seus pressupostos possibilitam pensar as exacerbações e contradições de nossa sociedade moderna. Hobbes é atual porque pensa uma concepção de homem, cujos aspectos possuem validade se aplicados ao homem do nosso tempo, marcado por um profundo desejo de poder e pelo ocultamento e disfarces do medo da morte.
Hobbes tem a preocupação de construir um sistema e, como poucos, privilegia dois conceitos fundantes do ser humano e da sociedade: desejo e medo. Hobbes, inaugurando a era moderna do pensamento, identificada como mecanicista, é um dos primeiros a procurar resolver os problemas do Estado e do cidadão, a partir de uma sistematização racionalista. Por um processo dedutivo, busca na causa da causa encontrar os componentes (“as peças”) que vão movimentar a sua “máquina política”. Partindo da “máquina desejante”, ou seja, do homem que é desejo incessante determinado por leis, Hobbes desenvolve um sistema político, que nasce de uma teoria geral do homem, de uma antropologia, de uma espécie de psicologia empírica do desejo. Desejo ilimitado, “desejo de mais e mais poder”, sem o qual o homem não seria homem.
Desse movimento primitivo, do desejo, tão essencial à existência do indivíduo e à conservação da espécie, surge à ameaça que a todos se prenuncia: a morte. O desejo que dá vida precisa ser contido, controlado e limitado, sob o risco da morte violenta, ameaça constante no estado de natureza, estado de guerra, teorizado por Hobbes, no qual o desejo insaciável conduz o homem ao conflito, num contexto de igualdade e liberdade absoluta, em que todos têm direito à tudo, inclusive invadir sobre o que é do outro.
Nesse estado de guerra, a alma gêmea do desejo é o medo. Medo da morte, eterna ameaça que, segundo Hobbes, é o mais indesejável dos males. Hobbes então, pelo exercício da razão, vai buscar compreender e dar conta destas duas paixões, necessárias e que se necessitam: o desejo e o medo. O Estado absoluto, concentrador de todos os poderes, é a instância máxima, proposta por Hobbes, para se impor, disciplinando as paixões através de uma mecânica de punição e recompensa. Mecânica de controle do poder como solução política para um problema existencial: desejar viver e estar prematuramente condenado a morrer.
Neste trabalho vamos nos debruçar mais especificamente, sobre a mecânica de punição e recompensa engenhada por Hobbes na tentativa de solucionar o que podemos chamar de uma espécie de paradoxo do desejo: o desejo, o mesmo imprescindível à vida, precisa ser contido. Como então manter no homem acesa as chamas do desejo sem que elas o consumam? Como limitar sem suprimir? Investigaremos como Hobbes engenha um sistema capaz de afastar o maior dos males, ou seja, a morte, fazendo uso do medo como limitador do desejo.
2. O MEDO DA PUNIÇÃO
“…os homens não tem prazer na companhia dos outros, quando não existe um poder capaz de atemorizar a todos” (XIII)
A base de criação do Estado, para Hobbes, está na necessidade de limitar o desejo desenfreado dos homens, cuja natureza humana é marcada pelo incessante desejo de poder, que coloca em risco a vida no hipotético estado de natureza. A composição antropológica e psicológica do homem que ambiciona mais e mais, desconfia, teme o ataque do outro e vai ao encontro da vanglória, num ambiente de igualdade e liberdade absoluta, inerente ao estado de natureza, tem como único desdobramento possível o estado de guerra. Ameaça da morte violenta que ultrapassa as fronteiras do teórico e se pragmatiza na experiência do conflito, historicamente registrada ao longo dos tempos, tornando o controle um processo indispensável que caberá ao Estado, segundo Hobbes, engenhar e comandar. Uma espécie de mecânica de controle de poder necessária à conservação da espécie humana que tem no medo da punição um dos constitutivos fundamentais.
O homem vê na institucionalização do Estado a saída para vencer a incômoda, indesejada e constante ameaça da morte. Forma-se o corpo político pelo acordo entre os corpos desejantes de cada indivíduo. Um acordo mediados pela vontade e pela razão. O Estado, detentor de uma soberania absoluta, o maior dos poderes, é a única instituição capaz de exercer a função repressiva do desejo2, protegendo o homem do próprio homem, do homem que é lobo do homem (“homo homini lupus”3), na medida em que não só deseja sobreviver, mas deseja prosperar, viver confortavelmente.
Na decisão pela submissão ao Estado, o indivíduo que tinha uma liberdade ilimitada no estado de natureza, permuta uma fatia desta liberdade pela esperança numa vida de paz. Na visão de Hobbes, o Estado surge como uma restrição que o homem impõe a si mesmo como forma de cessar o estado de guerra de todos contra todos. A vida só é possível a partir do controle do desejo, que se dá através da repressão do Estado:
“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto”. (Leviatã, p.141)
Todos os homens devem submeter-se ao Estado, ao soberano. Estrutura estabelecida a partir de uma relação de poder e submissão que dá sustentação ao funcionamento do Estado. De um lado temos o soberano, a quem compete definir as leis civis e as medidas necessárias à paz e defesa dos homens. De outro lado temos os súditos, o povo submisso, cuja obrigação é obedecer às prescrições do soberano. Deve-se lembrar que, para Hobbes, tal submissão do povo em relação ao soberano resulta de uma decisão voluntária dos homens realizada no pacto.
O poder que o soberano exerce provém do pacto que os próprios homens fizeram entre si e pelo qual decidiram, para o bem de si mesmos, interesse, instituir o Estado e conceder total poder à pessoa de um homem só ou de uma assembléia, para em tudo representá-los. Nesse ato está implícita a decisão voluntária do homem que tendo nascido livre opta por criar um mecanismo que delimitará a sua liberdade natural para evitar uma guerra de todos contra todos. Essa decisão é necessária como único meio de proteger os homens contra os perigos da competição violenta. O poder que se impõe e subordinação a esse poder está alicerçada no consentimento individual de cada um e de todos os homens, ou seja, da unidade, que manifesta estar de acordo com a instituição de um único representante, o qual concentre em sua vontade a vontade de todos. O soberano exerce o seu poder mediante uma autoridade que lhe foi conferida pela unidade dos homens contratantes.
Hobbes infere a essência do Estado como uma entidade composta pela soma dos vários poderes individuais dos homens em sociedade. É aí que se dá a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade, quando o individual funda o coletivo. Passagem que não acontece como um acontecimento histórico, pois Hobbes não está falando de um natureza, que poderia ter sido vivida por nossos ancestrais, o primitivo da raça humana, o homem da caverna. Mas está se referindo ao homem frente a qualquer situação de inexistência de governo, na qual impera a insegurança e a desordem. O representante do Estado, o soberano, no momento em que for instituído, possui poderes ilimitados e absolutos. Detém o monopólio do medo da punição. Nesta situação, os súditos têm a obrigação de tornarem suas as decisões do soberano e assim respeitá-las:
“Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens.” (Leviatã, XVIII, p145)
O descumprimento das leis criadas pelo soberano sujeitará os súditos às punições. O conhecimento da lei civil4 é de competência universal, todos devem conhecê-la, sendo que apenas o Estado pode fazê-las e ordená-las aos seus súditos, não estando sujeito a elas. Há lei que coloca o soberano na condição de único legislador, único com poder de revogar uma lei por outra lei. Há lei que isenta o soberano de se submeter à lei. Há lei pela qual um costume ou tradição, respeitada ao longo do tempo, é lei até o momento em que o soberano sair do silêncio e se manifestar contrário, podendo extinguí-la, independentemente de seu tempo de vigência. Há lei dizendo que as leis naturais e as leis civis estão contidas uma na outra e quem obedece a uma obedece à outra. Porém a liberdade natural pode e deve estar contida na lei civil, criada para limitar os avanços do desejo insaciável do homem natural. Há lei dizendo que a lei jamais pode ser contrária à razão e o que faz ser lei não é a jurisprudência, ou sabedoria dos juízes, mas a razão do Estado. Quando surgir uma contradição na lei é possível interpretar, ou seja, o que o legislador quer dizer, e eliminar a contradição. Para isso o juiz subordinado ao soberano deve levar em conta a razão que levou este último a fazer determinada lei. Está em jogo a intenção, o desejo do soberano, pois uma lei é a manifestação da vontade de quem a ordena.
Para Hobbes a sujeição dos súditos às leis não exclui a liberdade dos homens. É justamente a obediência ao Estado e às leis que garantem a conquista da liberdade. Liberdade que para Hobbes consiste na ação livre e racional para sair daquela situação de medo e insegurança do estado de natureza, quando cada indivíduo renuncia a uma parcela de sua liberdade individual, da qual era possuidor, substituindo-a pela segurança existente no estado de sociedade. Assim, cabe ao Estado, recorrer ao recurso da pena5 para impor o cumprimento das leis pelo medo da punição.
Segundo Hobbes, apesar da coerção, as ações do homem continuam sendo próprias, não há nenhum mecanismo que conduza as suas mãos, os seus gestos para um fim determinado. A necessidade não impede a vontade e a razão de deliberar. Toda vontade ou inclinação provém mesmo de alguma causa, e esta causa culmina em uma causa primeira que é a necessidade. Fazer o que se quer está intrinsecamente acompanhado de se fazer o que Deus quer e apenas isto6. Apesar de Deus estabelecer o que se deve fazer, ele não impede o não fazer. Da mesma forma funciona com o Leviatã. Ele estabelece as condições necessárias ao comportamento prudente, mas não impede que se faça o contrário, caso isto ocorra o homem assumi por si as conseqüências da punição ou castigo, geradas tanto da desobediência para com Deus como para com o Leviatã.
Diferentemente das leis de natureza que não precisam ser escritas e podem ser resumidas no mandamento hobbesiano, “não faça aos outros o que não consideras razoável que seja feito por outrem a ti mesmo” (Leviatã XXVI, p211), as leis civis, além de escritas, precisam ser publicadas com sinais evidentes de que sejam de autoria do soberano. Para Hobbes não basta a escrita da lei e sua publicação. Ainda assim a lei requer uma interpretação, pois a natureza da lei não se encontra na letra, mas sim na intenção do legislador. As leis naturais também não se eximem de interpretação, visto que são poucos, ou nenhum, aqueles que conseguem fazer uso da razão natural sem a inferência das paixões, dentre elas o amor de si. Nos casos de erro de interpretação o soberano, que pode errar em seu julgamento da equidade, terá uma nova oportunidade para corrigir o erro anterior, quando de um novo caso semelhante tiver por julgar.
Hobbes considera o bom juiz aquele que é capaz de efetuar uma correta compreensão da lei, confiando para isso na sanidade da razão e na inclinação para uma maior introspecção; também naquele que despreza riquezas consideradas desnecessárias; naquele que se abstém do medo, do ódio, do amor e da compaixão e, por último, naquele que tem atenção e paciência para ouvir e capacidade para aplicar o que ouviu. Para Hobbes a autenticidade da lei está na interpretação do que o soberano quis dizer e isso depende de quem o soberano designou para julgar:
“…nenhuma lei escrita, quer seja expressa em poucas ou em muitas palavras, pode ser bem compreendida sem uma perfeita compreensão das causas finais para as quais a lei foi feita, e o conhecimento dessas causas finais está com o legislador.” (Leviatã XXVI, p214)
A lei perde toda a sua utilidade se apenas contemplar proibições. Para que a repressão se suceda de forma eficiente, se faz necessário o estabelecimento de castigos, que compõem uma mecânica de punição. Nas palavras de Hobbes: “se toda lei for infringida sem o justo castigo, torna-se inútil.” (Do Cidadão, XIV, p. 189). Outros dois requisitos necessários para que a lei seja eficiente é que os cidadãos conheçam, primeiro a pessoa que detém o poder de estabelecer as leis e punir e segundo o que significa o conteúdo da lei. Esta última prerrogativa exime a eventual justificativa de negligência pelo desconhecimento ou ignorância das leis. Cada um sabe o que fez e deve saber o que dita a lei sobre o que fez.
Falar de submissão, punição e castigo, pode induzir-nos à acusar Hobbes de totalitarismo, de defensor de tiranias. Para Norberto Bobbio, Hobbes foi um conservador, não um totalitário7. Para se chegar a um Estado totalitário é preciso pressupor uma totalidade ética, e o que fez Hobbes foi conceber um homem cidadão. Como cita Bobbio “o Estado hobbesiano é muito mais semelhante a uma associação do que a uma comunidade”8. Considerando, a partir da teoria de Hobbes, que o soberano possui um poder ilimitado, não podendo haver abuso de poder, característica marcante da tirania, visto que não há limites para serem ultrapassados. Contrariamente, o que pode levar os súditos ao rompimento do pacto e à desobediência é a escassez de poder. Se o soberano não cumpre com a tarefa essencial de garantir a paz, se os súditos se virem ameaçados pelo retorno do estado de natureza, eles têm o direito de rebelarem-se:
“… se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira, ou se mutile a sim mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer.” (Leviatã, XXI, p 175)
Hobbes chega a admitir que o súdito possui legitimidade para resistir, mas não nega ao soberano o direito de condenar e fazer com que a condenação seja executada. Os direitos de ambos se chocam. Um na defesa de sua vida um na defesa da vida dos cidadãos. Conforme Norberto Bobbio: “Vencerá, como no estado de natureza, o mais forte dos dois.”9
É importante ressaltar que Hobbes abre uma ínfima possibilidade de desobediência representada na rebelião, estando esta mais para uma auto defesa, ou seja, uma defesa de interesses preponderantemente individuais, do que um movimento revolucionário em nome dos interesses de uma coletividade, como por exemplo em nome de uma minoria excluída:
“Ao fundar um Estado, cada um renuncia ao direito de defender os outros, mas não de defender-se a si mesmo. Além disso, cada um se obriga a ajudar o soberano na punição de outrem, mas não na sua própria.” (Leviatã, XXVIII, p. 235)
Conforme Renato Janine, Hobbes abre uma exceção e chega a dar uma dimensão coletiva ao direito de resistência, mas totalmente destituída de especificidade. Sem um estatuto jurídico, a rebelião é um caso de polícia10, uma luta isolada entre mocinho e bandido, entre policiais e foragidos. A intenção não é a conquista do poder. Não é eleger um novo soberano. Até porque não estão estrategicamente organizados. Esta muito mais para um “defenda-se quem puder” do que um “Deus por todos e todos por um”. Muito mais do que unidos por uma causa, se juntam para tentar salvar alguns de uma execução. É o último recurso daquele ou daqueles que tenham cometido algum crime capital, cujo decreto de morte já está lançado. Esses sim poderão se unirem em defesa uns dos outros, pois estarão defendendo a vida:
“Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado. Mas caso uma grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo quel cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e defenderem uns ao outro? Certamente que a têm: porque se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer.” (Leviatã, XXI, p. 176)
Hobbes confia muito mais no Estado de um homem só, do que no povo. No Estado hobbesiano grupos e associações, que em nossos dias corresponderiam à entidades de classes, sindicatos, associações de bairro, não apresentam poder de resistência. Hobbes vê tais grupos não como um fator estabilizador da ordem política vigente, e muito menos da Justiça, mas como elementos geradores de dissensões ou de conflitos não só entre os próprios cidadãos como também, e principalmente, entre os cidadãos e o Estado, e, por via de conseqüência, esses grupos não devem ter autonomia legal (no sentido de serem titulares de direitos de qualquer espécie) frente o Estado. A própria família era encarada por Hobbes como uma mera instituição social arcaica, voltada basicamente a procriação e perpetuação da espécie humana e não como um dos elementos fundantes do Estado. Assim a rebelião não se traduz numa ameaça ao soberano. É uma doença que pode ser evitada. Dá margens para que da rebelião o soberano se previna com certa tranqüilidade. E, o que aqui é muito importante destacar, não impõe medo ao soberano.
No fundo Hobbes desacredita na rebelião. Não seria nada racional que os mesmos homens que fizeram uso da razão para firmar o pacto, agora não façam uso da razão na hora de descumpri-lo. A rebelião seria então um ato contrário à razão:
“Quanto à outra hipótese, de conquistar a soberania pela rebelião, é evidente que a tentativa, mesmo que seja coroada de êxito, é contrária à razão: por um lado porque não é razoável esperar que tenha êxito, antes pelo contrário; por outro lado porque ao fazê-lo se ensina aos outros a conquistar a soberania da mesma maneira. Portanto, a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza.” (Leviatã, XV, p. 125)
Para que a segurança seja garantida, Hobbes reserva, ao soberano, autonomia e poder absoluto. Pelo pacto o soberano está legitimamente impune, pois o mesmo, para exercer sua função a pleno, não pode estar sujeito a ninguém, caso contrário deixaria de ser soberano. Todavia, há um mínimo que o soberano deve assegurar. São as condições básicas para a sobrevivência dos súditos que apesar de abrirem mão parte do direito irrestrito que possuíam no estado de natureza, guardam consigo ainda direitos remanescentes:
“Como era necessário à conservação de cada homem, que ele devesse se separar de alguns de seus direitos, assim, é da mesma forma necessário para a mesma conservação que ele retenha alguns outros direitos como: direito à defesa do seu corpo, a usufruir livremente do ar, da água, e de tudo o que for necessário para a vida.” (Do Cidadão, III, pg 60)
Morte violenta não é só aquela decretada pelas armas, mas também é violência morrer à míngua, pois é viver menos que o tempo designado pela natureza. É de obrigação do soberano garantir a cada homem, além da segurança contra a morte violenta, as condições mínimas para a sobrevivência. Ar, água e alimentos, são essenciais para a vida humana. Ninguém pode ser privado de sobreviver e este direito engloba as condições materiais mínimas. Fome e miséria denunciam a incapacidade do soberano e nesse caso a desobediência está autorizada. A incompetência administrativa do soberano absolve os súditos de sua obrigação. Ao soberano não se exige qualidades morais, mas eficiência:
“Quando um homem está privado de comida, ou de outra coisa necessária à sua vida, e não pode manter-se por nenhuma outra via, a não ser por algum ato contrário à lei, então está totalmente desculpado.” (Leviathan, XXVII)
Supridas as carências que definem o mínimo, o homem tem o desejo de bens e honras. O soberano tem também o compromisso com a prosperidade dos súditos. O Estado tem uma função econômica e social11. O desenvolvimento econômico no âmbito interno e externo do país são meios necessários para obtenção do progresso. Hobbes inclusive trata de questões ainda hoje consideradas vitais para um país que vê no desenvolvimento econômico um caminho essencial para a conquista de uma vida confortável, passando pela reforma agrária e geração de empregos, palavras e problemas em voga também nos tempos atuais em nosso cotidiano social, político e econômico:
“Mas no que diz respeito àqueles que possuem corpos vigorosos, a questão coloca-se de outro modo: devem ser obrigados a trabalhar e, para evitar, a desculpa de que não encontram emprego, deve haver leis que encorajem toda a espécie de artes, como a navegação, a agricultura, a pesca e toda a espécie de manufatura que exige trabalho. Aumentando ainda o número de pessoas pobres mas vigorosas, devem ser removidas para regiões ainda não suficientemente habitadas, onde contudo não devem exterminar aqueles que lá encontrarem, mas obrigá-los a habitar mais perto uns dos outros e a não utilizar uma grande extensão de solo para pegar o que encontram, e sim tratar cada pequeno pedaço de terra com arte e cuidado a fim de este lhes dar o sustento na devida época.” (Leviatã, XXX, p258)
Segundo Macpherson o único modelo de sociedade que de fato preenche os requisitos de Hobbes é o modelo de sociedade de mercado possessivo12, cujos postulados não se opõe às características do Estado hobbesiano. Numa sociedade de mercado possessivo o Estado pode interferir no uso da terra, no uso da mão-de-obra, no fluxo do comércio, além de ter autonomia para prestar assistência privilegiada a um determinado segmento, com criação de subsídios. Pode ainda exigir padrões mínimos de qualidade como também coibir a prática de abuso de preços. Contudo, apesar da interferência, conforme Macpherson, o modelo de mercado possessivo é concebido pelos indivíduos. A competição se dá entre eles que não se contentando com o poder que tem, vão em busca de mais poder, como uma forma de conservar o poder atual.
Agora se a política estatal falhar, face à economia de mercado, deixando os indivíduos em situação de miséria, então estará o soberano sujeito à ameaça da destituição, o que não significa dizer que a rebelião esteja legitimada com observa Renato Janine Ribeiro:
“E o soberano, sendo responsável pelo corpo político, também o é pela vida dos súditos: fome e miséria denunciam que é incapaz em seu ofício (embora não concedam aos súditos, enquanto coletividade, o direito de depô-lo, restituem a cada miserável o direito de natureza suficiente para guerreá-lo).” (Ao Leitor Sem Medo, III, p.100)
Independentemente de ser cristão, o soberano tem a obrigação de cumprir as leis de natureza, mediante a qual está proibido de colocar em risco a vida de seus súditos. O soberano que desobedecer às leis naturais estará ameaçando, necessariamente, a auto-preservação da espécie humana, habilitando seus súditos à desobediência e, ao mesmo tempo, estará desobedecendo as leis divinas. Atendendo a primeira lei de natureza, que rege sobre a busca da paz, tanto no mundo terreno como no Reino de Deus, e o conseqüente caminho da guerra como meio de alcançá-la, fica o súdito legitimado a se defender, a guerriar. Tal situação corresponderia à violação do pacto, ao retorno ao estado de natureza, do desejo incontido, do medo generalizado, da guerra de todos contra todos:
“Que todo o homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha a esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.” (Leviatã, XIV, p. 114)
Hobbes é minimalista quando se trata de controle e punição do soberano, demonstrando uma desproporcionalidade entre a probabilidade do soberano ser punido e a do súdito. Além de reduzir as condições passíveis de punição ao soberano, Hobbes ameniza as penas contra este. O medo da punição pouco o afeta já que não se encontra na dimensão concreta. Não há outro homem, nem outro soberano para punir o rei. O soberano está sujeito apenas às punições divinas, portanto, transcendentais, quando não observar devidamente as leis naturais (leis da natureza), sendo que, para Hobbes, as leis naturais e os mandamentos divinos são a mesma coisa, competindo ao soberano fazer boas leis13:
“Aquele que, portanto, assumiu a administração do poder nesta forma de governo, pecaria contra a lei de natureza (pois colocar-se ia contra a confiança daqueles que lhe atribuíram tal poder) se não fizesse o estudo dos meios viáveis por meio de boas leis, a fim de garantir abundantemente aos súditos não apenas as coisas boas que se relacionam com a vida, como também aquelas que ampliam o seu deleite.” (Do Cidadão, XIII, 172)
Quanto aos súditos, Hobbes estabelece um poder coercitivo terreno para assegurar o cumprimento das leis, cuja violação por parte dos súditos acarretará em punição. Hobbes é bem mais incisivo com os súditos do que com o soberano em se tratando de punições. O fardo do medo para os súditos tem um peso bem superior. Além da punição divina, tem a punição terrena. A intimidação pelo medo vem da terra e vem do céu. As penas podem ser humanas e divinas. Hobbes divide as humanas em corporais, pecuniárias, a ignomínia, a prisão e o exílio. As corporais, como o nome induz, são aquelas que afetam a integridade física. São as flagelações, os ferimentos, a privação de prazeres do corpo antes da pena desfrutados. As pecuniárias são aquelas penas que consistem no confisco de quaisquer bens de domínio do infrator, incluindo dinheiro e terras. A ignomínia consiste na privação de um bem considerado honroso como insígnias, títulos e cargos. A prisão é a restrição de movimentos, privando a liberdade, seja num espaço delimitado onde as pessoas são obrigadas a trabalhar, seja num lugar onde as pessoas ficam acorrentadas. O exílio é aquela condenação que obriga o súdito a sair dos domínios do território do Estado ou de uma de suas partes.
O balizamento para considerar o súdito um infrator é dado pelas leis civis e pela Sagrada Escritura, na medida em que são desobedecidas e transgredidas. Na verdade as leis civis são criadas pelo soberano como artifício para tornar públicas as leis naturais que no estado de natureza não estavam escritas. Quanto a Sagrada Escritura, a interpretação14 é uma função do poder supremo. Assim o monstro bíblico assume na terra o poder de Deus.
Se o soberano ou os súditos forem ateus, o mecanismo de controle do desejo, tendo como pressuposto o medo da punição divina, terá um impasse por resolver. Como fazer ter efeito uma punição divina se não há crença em Deus? Os súditos ainda estão sujeitos à punição terrena. Estão na mira das penas que decorrem da quebra das leis civis. Agora sobre o soberano ateu restam apenas o receio de uma ínfima possibilidade de rebelião, da qual, como vimos, poderá ainda se defender, e a punição natural15, cujo inquisitor, o poder natural, não tem a força da concretude, indispensável para o ceticismo comum a um ateu.
Como o medo da punição terrena afeta apenas o súdito e o medo da punição divina fica comprometido e perde a eficácia quando o súdito ou o soberano são ateus, Hobbes parece deixar o soberano excluído da mecânica de controle do poder. Sem a ameaça de medo, necessária para frear a mortífera sagacidade do desejo, aumentando a vulnerabilidade ao estado de guerra.
3. A ESPERANÇA NA RECOMPENSA
“Tudo o que é necessário à salvação está contido em duas virtudes, fé em Cristo e obediências às leis.” (Leviathan XLIII, p. 412)
A natureza humana não é conteúdo que se preenche mas desejo sempre insatisfeito. Para que a ambição se realize sem danos, além do medo para freiá-la, a esperança tem seu lugar no Estado. Em Hobbes, se de um lado temos o medo da punição como uma das engrenagens fundamentais na mecânica de controle do desejo, engenhada pelo Estado, máquina de obediência16 conforme Bobbio, por outro lado temos a engrenagem da esperança na recompensa, para compensar a repressão necessária para conter a ímpia do desejo. Afinal não só de morte vive o homem.
O Estado hobbesino, resultante do pacto entre razão e paixão, não só tem a função de garantir a paz, evitar a precipitação da morte, mas também oferecer condições para uma vida confortável e feliz. O Estado se constitui num homem artificial17, criado e programado para fins determinados entre os quais a paz e a prosperidade. Na medida em que o soberano é instituído, os homens têm o direito a todas as coisas limitados ao que prescreve a lei e ao poder do soberano, inclusive na determinação da posse de seus bens, que será regida pelas leis civis de cada Estado:
“…pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por nenhum de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade.” (Leviatã, XVIII, p148)
O soberano concentra o poder de todos o que lhe garante inclusive recorrer à força e os recursos de todos para assegurar a paz18. Uma só pessoa reúne o desejo de todas as outras. Mesmo que a escolha pelo soberano não foi unânime, uma minoria não fez a mesma escolha, ou seja, foi voto vencido na escolha de seu representante, deverá necessariamente reconhecer os atos do soberano como sendo seus, só assim os súditos poderão ter esperança de evitar a morte violenta e almejar uma vida cômoda, conforme cita Macpherson:
“É essa transferência de direitos que cria o seu dever para com o soberano. E já que esse pacto é uma contenção dos apetites, não pode ser obrigatório sem um poder para torná-lo obrigatório; daí, terem os indivíduos de transferir seus poderes naturais ao mesmo tempo que seus direitos naturais. Isso dá ao soberano autoridade absoluta e poder suficiente para brandir eficazmente essa autoridade. Somente reconhecendo essa autoridade podem os indivíduos: (a) ter esperança de evitar o perigo constante de morte violenta e todos os outros males que, de outro modo atrairiam inevitavelmente para si próprios, devido à sua – por outras causas – necessariamente destrutiva busca de poder, uns sobre os outros; e (b) ter esperança de garantir as condições para o viver cômodo que evidentemente desejam.”(Teoria do Individualismo Possessivo, p. 81)
Não basta pautar a relação do soberano com o súdito no medo da punição, como constitutivo único de uma teoria da obediência. O homem não é só medo. O medo sozinho não constrói a representação. Como cita Renato Janine Ribeiro, “o medo requer o seu gêmeo”. O homem é desejo e Hobbes, para dar continuidade ao movimento do desejo e satisfazer os desejos particulares de cada indivíduo, propõe um dever político baseado na recompensa. Se por um lado o súdito obedece pela coerção imposta pelo medo e instrumentalizada pela punição, por outro lado o súdito obedece pelo interesse em receber algo em troca de sua concessão:
“Pois só governa propriamente quem governa seus súditos com a palavra e com a promessa de recompensa àqueles que lhe obedecem, e com a ameaça de punição àqueles que não lhe obedecem.” (Leviatã, XXXI, 263)
O desejo de sobrevivência, a auto-conservação, tem efeito na passagem do estado de natureza para o estado de sociedade, mas não bastará para manter o homem numa vida civilizada. Além da garantia de uma vida segura, com o afastamento do maior dos males, a morte, perspectiva de proteção que foi determinante para o homem do estado de natureza abrir mão de parte de sua liberdade em troca da paz, o homem hobbesiano deseja comodidade:
“A comodidade da vida consiste em liberdade e riqueza. Por liberdade eu quero dizer que não existe proibição sem necessidade de alguma coisa para um homem, que seria legítimo para ele na lei de natureza; ou necessário para o bem da república, e que os homens bem intencionados possam não cair no perigo das leis, como em armadilhas, antes que sejam alertados. Diz respeito também a esta liberdade que um homem possa ter uma passagem cômoda de um lugar a outro, e não ser aprisionado ou confinado com a dificuldade de caminhos e falta de meios para transporte de coisas necessárias. Quanto à riqueza do povo, ela consiste em três coisas, a boa ordenação do tráfico, a obtenção de trabalho, e a proibição de consumo supérfluo.” (Os Elementos da Lei Natural e Política, p. 207)
As condições mínimas para conquistar riqueza são viabilizadas por meio de leis, entre as quais estão aquelas criadas para favorecer o aproveitamento produtivo da terra e da água, como também para incentivar o trabalho. São úteis também as leis que proíbem o gasto desordenado com o consumo de suprimentos e roupas, cuja limitação pode ser obtida através da cobrança de impostos que deverão incidir sobre o consumo e não sobre a riqueza:
“Podemos então questionar se os súditos deveriam contribuir para o bem público de acordo com a taxa do que recebem ou do que gastam; ou seja, se os cidadãos devem pagar tributo conforme sua riqueza, ou se devem ter seus próprios bens tributados, de maneira tal, que cada um contribua de acordo com sua despesa. Mas consideremos que, onde os tributos são cobrados conforme a riqueza, aqueles que receberam o mesmo tanto não têm iguais posses pois, enquanto um conserva o que adquiriu por ser frugal, o outro esbanja por luxúria e assim, arcam igualmente para com os encargos públicos; e se considerarmos de outra forma, que naqueles lugares onde as taxas se dão pelos bens, cada homem já paga o que é devido à república no próprio ato de gastar e consumir seus bens, sem fazer distinção do restante que depende, e que não paga conforme o que possui, mas sim conforme o benefício que obteve graças ao Estado.” (Do Cidadão, XIII, 177)
Mas se a esperança depositada na promessa de recompensa não se restringe à conquista de bens terrenos e temporais resta a perspectiva no céu19. O homem hobbesiano não se esgota em viver, busca transcender a vivência terrena. Hobbes não se contenta em apenas criar um sistema de proteção ao direito à vida terrena, mas quer também proteger o direito à vida eterna. A vida é um desejo de infinitude e a vida terrena com sua finitude não basta ao homem que quer mais e mais. Para Hobbes é um conatus que não se contenta com o que tem, quer sempre mais. Esse movimento ininterrupto do desejo20, vai da pacificação à reivindicação de mais. Se a conservação da vida é um instinto natural do homem, a vida é uma espécie de sumo bem. O apego à vida e a rejeição à morte, levam a uma extensão do desejo que consiste em querer continuar vivendo, mesmo depois da morte. Justifica-se então a esperança na vida eterna, prometida por Deus através das Sagradas Escrituras.
Os homens hobbesianos, como homens do desejo, desejam a salvação, que, para os bons cristãos consistem na entrada no Reino de Deus, de modo que alcancem a vida eterna. Para isso são necessárias duas virtudes: “fé em Cristo e obediência às leis”21. Leis essas que são as leis de Deus (divinas), que, por sua vez, nada mais são do que as leis de natureza. Como as leis de natureza e as leis civis contêm-se reciprocamente, o soberano é o responsável pela positivação das leis de Deus:
“Tendo assim mostrado o que é necessário para a salvação, não é difícil reconciliar nossa obediência a Deus com nossa obediência ao soberano civil, que ou é cristão ou infiel. Se for cristão, permite a crença neste artigo que Jesus é o Cristo, e em todos os artigos que estão nele contidos, ou que são por evidente conseqüência dele deduzidos, o que é toda a fé necessária à salvação, E porque é um soberano, exige obediência a todas suas leis, isto é, a todas as leis civis, nas quais estão também contidas todas as leis de natureza, isto é, todas as leis de Deus, pois além das leis de natureza e das leis da Igreja, que fazem parte da lei civil (pois a Igreja que pode fazer leis é o Estado) não há nenhumas outras leis divinas, nem de acreditar nem de obedecer a Deus.” (Leviatã, XLIII, p.420)
A recompensa do céu, ou seja, a vida eterna, é uma recompensa maior do que a vida na terra, por sua dimensão infinita. Seguindo as Escrituras, para Hobbes, a vida eterna começa a partir da ressurreição do corpo que ocorre no dia do juízo final, cumprindo-se assim a promessa contida na segunda epístola de Pedro (capítulo 3, versículo 7). Da mesma forma que a recompensa divina a punição divina, que se dá por meio dos tormentos eternos, é um castigo superior às punições terrenas, na medida que interrompe de uma vez por todas o progresso contínuo do desejo. Apesar de Hobbes fazer um abrandamento da punição divina. Para ele o inferno é apenas o lugar de uma segunda e definitiva morte. Não há um castigo, nem uma tortura eterna para os condenados:
“…os textos que mencionam fogo eterno, tormentos esternos, ou o verme que nunca morre, não contradizem a doutrina de uma segunda e eterna morte, no sentido próprio e natural da palavra morte. O fogo, ou tormentos preparados para os maus em Gehena, Tophet, ou em qualquer outro texto, podem continuar para sempre; e nunca faltarão homens maus para serem neles atormentados, muito embora nem todos nem ninguém eternamente. Pois sendo os maus deixados no estado de ressurreição viver como o fizeram, casar-se, e serem dados em casamento, e ter corpos grosseiros e corruptíveis, como agora toda a humanidade tem; e conseqüentemente podem gerar perpetuamente, depois da ressurreição, como o fazim antes, pois não há nenhum trecho das Escrituras que diga o contrário.” (Leviatã, XLIV, p. 437)
Seremos todos ressuscitados para o Juízo Final e, aí sim, os justos receberão a vida eterna. Após a morte, o homem, até o dia da ressurreição, continuará morto durante este tempo sem percebê-lo, já que para os mortos a dimensão de tempo se desfaz. Para os homens de fé e obediência será reservado uma vida onde impera a retidão. Estará salvo de todos os males e calamidades determinadas pelo pecado a partir de Adão, e estará isento da morte e da miséria. Hobbes cita Isaías para explicar o estado de salvação:
“Olha para Sião, a cidade e de nossas solenidades; teus olhos verão Jerusalém, uma morada tranqüila, um tabernáculo que não deverá ser derrubado; nem uma só de suas estacas deve ser retirada, nem uma só de suas cordas deve ser rompida. Mas ali o glorioso Senhor porá ante nós um lugar de amplos rios e correntes, onde não irá galera com remos, e onde não passará galante navio. Porque o Senhor é nosso juiz, o Senhor é nosso legislador, o Senhor é nosso rei, e ele nos salvará. Tuas cordas afrouxaram; elas não podem segurar bem o mastro; elas não podem esticar a vela; então se dividirá a presa de um grande despojo; os fracos tomam a presa. E o habitante não dirá que está enfermo; ao povo que lá morará será perdoada sua iniqüidade.” (Leviatã, XXXVIII, 333)
Mesmo incorporando a punição divina e a recompensa divina, com base nas Escrituras, em sua mecânica de poder, Hobbes chega ser acusado de ateu. Na época o ateísmo era entendido como uma postura cética que negava a imortalidade da alma, a existência do Céu e do Inferno. A acusação era muito mais política do que religiosa. Era uma estratégia de defesa da instituição clerical que pela teoria de Hobbes estaria subordinada ao Estado. Conforme Renato Janine Ribeiro, a doutrina hobbesiana não é de um ateu, mas de um deísta22. Facilitando a salvação, Hobbes dá valor à recompensa, abrindo caminho para a manutenção do desejo. Com isso consegue conter sem suprimir. O medo tendo como contrapeso a esperança Hobbes de fato parece ser cético diante dos tormentos eternos, mas não dispensa a obediência das leis divinas e a fé, nem desfaz a promessa da vida eterna. A fé supre nossa incapacidade de sermos justos. A fé é ajutório porque atenua as nossas culpas, já que por Adão até o justo está em pecado. :
“Tudo o que é necessário à salvação está contido em duas virtudes, fé em Cristo e obediências às leis. As últimas delas, se fosse perfeita, seria suficiente para nós. Mas porque somos todos culpados de desobediência à lei de Deus, não apenas originalmente em Adão, mas também atualmente por nossas próprias transgressões, exige-se agora não só a obediência para o resto da nossa vida, mas também uma remissão dos pecados dos tempos passados, remissão essa que é a recompensa de nossa fé em Cristo. Que nada mais se exige necessariamente para a salvação é algo que fica evidente pelo seguinte, que o reino de Deus só está fechado aos pecadores, isto é, aos desobedientes ou transgressores da lei, e não àqueles que se arrependem e crêem em todos os artigos da fé cristã necessários à salvação.” (Leviathan XLIII, p. 412)
Hobbes procura ser sutil na tentativa de eliminar uma dificuldade que é a necessidade simultânea de obedecer ao deus mortal, o homem soberano, e ao Deus imortal, o próprio Deus. A voz de Deus se dá aqui na terra por intermédio do soberano, através do qual, Deus ordena tudo e à todos. O soberano é quem promulga e proclama as leis de Deus ou leis divinas. Estas leis são as mesmas leis de natureza, acrescidas da honra e do culto da divina majestade. Os que não acreditam no poder de Deus, que não possuem esperança Nele, devem ser compreendidos como seus inimigos. Por conseguinte não merecem a recompensa divina e ficarão a mercê das punições naturais. Como as leis de natureza feitas por Deus determinam obediência ao Estado, Hobbes legitima o poder do Estado a partir da transferência do poder divino ao soberano. Assim estes dois poderes não se contradizem, nem se diferenciam, mas se unificam. Igreja se converte em instituição do Estado e ambos passam ser a mesma coisa:
“Está, portanto, obrigado aquele que tem o poder supremo na Cidade enquanto cristão, quando houver questão sobre os mistérios da fé a fazer interpretar as Sagradas Escrituras por intermédio de eclesiásticos legitimamente ordenados. E, assim, na Cidade cristã, o julgamento tanto das coisas espirituais como das materiais compete à autoridade civil. E o homem ou conselho que detém o supremo poder é chefe da Cidade e chefe da igreja, pois igreja e Cidade cristã é uma coisa só.” (Do Cidadão XVII, p269)
Se no quesito medo da punição, o soberano hobbesiano tem sua coerção restrita à ameaça da punição divina, no quesito esperança na recompensa, o soberano está sujeito apenas à recompensa divina. E quanto à recompensa divina entendemos ser de pouca eficiência, seja quando aplicada ao soberano como também quando aplicada ao súdito. o mesmo entendemos quanto à recompensa divina, . Tanto punição como recompensa, no que tange ao soberano, ambas E da mesma forma que entendemos ser frágil apenas a punição divina, como condição coercitiva para o soberano cumprir com seus deveres, entendemos ser fraca a recompensa divina prometida para desfrute apenas depois da ressurreição. Na medida que a punição (o preço) é mínima para o soberano, devido ao seu distanciamento no espaço e no tempo, a recompensa também é escassa. Como conseqüência o conteúdo fraco da punição e da recompensa deixa o súdito propenso à transgressão, à beira da rebelião e o retorno nada confortável e seguro da guerra de todos contra todos.
4. CONCLUSÃO
“… não ter nenhum desejo é o mesmo que estar morto… (Leviatã, p. 74)
Em Hobbes o desejo e o medo são deduzidos da experiência empírica do viver. Mesmo que o estado de natureza seja uma abstração, ele expõe a natureza agressiva do homem, do homo homini lupus. Num contexto de liberdade total e igualdade entre todos o homem é o lobo do homem. O desejo e o medo pré-dispõem o homem ao conflito. O desejo determina o homem e o medo é seu gêmeo23. Sem o desejo o homem não tem vida. Cessar o desejo seria a própria morte. Desejar o que significa mover-se em direção a posse de poder e mais poder, como uma determinação natural de toda espécie humana, leva o homem a invadir sobre o que é do outro sempre por interesse, seja por impulso, seja por estratégia preventiva. E, como se não bastasse, se acrescenta o medo da ação invasora do outro sobre o que é seu. Invade por desejo de poder e invade por medo de perder. Ataque para conquistar e para prevenir.
Hobbes parte de um homem cru, determinado por um desejo primitivo e insaciável que, num contexto de absoluta liberdade e igualdade, denominado estado de natureza, está condenado à morte violenta e prematura. Todavia, o homem que deseja e teme não está destituído da racionalidade, sabe fazer uso da razão como instrumento que, associada à vontade própria, decide pela superação do maior dos males: a morte. A outra face do medo faz então o homem hobbesiano ressurgir das cinzas, firmando um pacto de união a fim de instaurar o Estado.
A saída apresentada por Hobbes é a instauração de um Estado soberano, suficientemente poderoso para garantir a paz, através de uma mecânica de poder, fundamentada no controle que se dá pela ameaça da punição e pela promessa da recompensa. Na punição prepondera o medo, na recompensa o desejo e a esperança. No Estado absoluto, instrumentalizado por leis para disciplinarem as paixões, temos a representação da vontade dos homens: a paz
Num Estado em que um homem ou uma assembléia de homens concentra todo o poder necessário para fazer cumprir a lei, tudo aponta para o comedimento, para a obediência dos súditos ao soberano. Tanto é assim que Hobbes dá pouca margem à rebelião, confiando na fidelidade mútua (entre súdito e soberano). Todavia, Hobbes não conta com a possibilidade do poder absoluto negligenciar. Não conta que o homem que governa tem desejos insaciáveis. Deixa o soberano a mercê do próprio desejo, sem limites, sujeito à insaciabilidade e ao auto-interesse. Seguindo os pressupostos de Hobbes, os elementos que formam sua mecânica de controle, a coerção e a premiação, quando aplicados a quem detém a soberania não são suficientemente fortes para policiar a polícia. Sobre o soberano não há controle, pelo menos na mesma intensidade do controle imposto aos súditos. A mecânica de controle quando aplicada ao soberano é fraca. A ameaça de punição contra o soberano está fora do mundo, no longínquo céu, enquanto o súdito tem a sombra da punição terrena e divina, esta última corporificada pelo soberano, acompanhando-o lado-a-lado, dia-a-dia. O mais forte, aquele que concentra mais poder, está menos pré-disposto ao medo. Então este certo relaxamento no controle do soberano não colocaria em risco o Estado, no sentido do soberano descumprir com suas obrigações?
Analisando a mecânica de controle, no modo hobbesiano, quando aplicada ao soberano infiel, ou seja, que não crê em Deus, que não é cristão, conforme qualificação do próprio Hobbes, a vulnerabilidade do poder do Estado fica ainda maior. Como confiar numa punição divina quando não há crença na divindade? O mecanismo de controle voltado ao soberano ateu é mais frágil ainda. Hobbes parece ter caído na sua própria armadilha. Concebeu como necessária a existência de um poder absoluto para limitar o desejo insaciável dos homens mas, ao que parece, não deu tanta importância aos limites do desejo do soberano que também é homem e, portanto, também deseja mais e mais. Provavelmente sua coerência racional obrigou-o a defender a premissa de que um absoluto para ser limitado não é mais absoluto, portanto, um absoluto não pode ser limitado por alguém. Talvez, para Hobbes, o soberano não seja homem e, portanto, não seja lobo.
Hobbes com sua tendência às determinações mecanicistas, não dá margens para pensar o indivíduo como um ser indeterminado, com um poder imaginário e criativo, com potência para reagir e enfrentar a coerção. Essa potência, associada a um possível esgotamento diante das repressões, causada pelo acúmulo de desejos reprimidos fruto da mecânica de controle podem num dado momento fazer a balança do poder pender mais para o lado do desejo do que do medo. Os súditos, ou um grupo podem se sentir livres para transgredir a lei, suprimindo inclusive a punição, seja através de uma negociação, seja por corrupção. Hobbes não conta que a potência criadora e o esgotamento das repressões, podem levar os súditos a transgredir o controle do rei. Numa aproximação com a psicanálise seria não dar conta do que foi reprimido.
Parece que Hobbes acertou muito mais no corpo humano do que no corpo político. No corpo humano soube identificar o desejo e o medo como elementos constitutivos do indivíduo, em seu estado mais primitivo representado pelo estado de natureza, que sem um poder capaz de impor limites, é cenário do estado de guerra, colocando o homem na mira do medo da morte. Ainda no corpo humano, Hobbes não confiou na possibilidade do auto-domínio, fazendo sua aposta num poder exterior como meio de superar o o estado de guerra do estado de natureza. Hobbes não acreditou na possibilidade psicológica do humano de se dominar, ou suportar, ou superar. Não considera que o indivíduo tem um poder imaginário, uma potência criadora, capaz de inventar condições que possibilitem uma convivência pacífica do eu consigo mesmo e do eu com o outro.
Com relação ao corpo político, constituído pelos súditos e pelo soberano, que usa o medo para limitar o desejo insaciável de cada cidadão, Hobbes parece apostar em demasia no artificialismo, não dando muita importância ao fato de que o soberano também é homem e requer controle e limites. Hobbes deixa o soberano a mercê do próprio desejo, sem fazer uso mais conciso do medo como instrumento de coerção, afim de estabelecer limites para conter os avanços da insaciabilidade e ao auto-interesse. Muito provável que nessa condição o indesejado estado de guerra retorne. Faltou ampliar as formas de coerção à quem detém a soberania. Caiu na contradição inerente ao absolutismo. É necessário ser absoluto para regular os outros, mas, na medida em que é absoluto, não precisa ser regulado.
Podemos pensar que não só o homem moderno, mas todas as configurações possíveis da face humana re-tém em si uma inclinação ao conflito, independentemente de ter origem numa pré-disposição natural, ou num condicionamento cultural. Diante desta inclinação, algum limite externo, que neste trabalho identificamos como mecânica de controle, se faz necessário para uma vida, na qual reine a paz. Agora, esse controle precisaria ser comum a todos e construídos por todos e, além do mais, só controle não basta. Para nos distanciar da morte violenta, se faz necessário o desenvolvimento da perspectiva do auto-domínio, da ética da responsabilidade, da alteridade, da responsabilidade pelo outro. Assim, em conformidade com a idéia de Hobbes, é necessário conter sem suprimir, e longe de Hobbes, pensar para os dias atuais novas propostas éticas, identificadas com o propósito fundamental da política e da vida, ou seja, a felicidade, partindo de uma reflexão substancial a respeito do desejo de poder e do medo da morte, tanto de quem é cidadão como de quem é governo.
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1 “Por ser filósofo, Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aquelas qualidades anti tradicionalistas da nova classe, que iriam levar três séculos para se desenvolver por completo. O seu Leviatã não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente um «cálculo das consequências», que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade, cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade. A chamada acumulação de capital que deu origem à burguesia mudou o próprio conceito de propriedade e riqueza: estes já não. eram mais considerados como resultado da acumulação e da aquisição, mas sim o seu começo; a riqueza tornou-se um processo interminável de se ficar mais rico. A classificação da burguesia como classe proprietária é apenas superficialmente correcta, porquanto a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela, contanto que concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza, e considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado como simples instrumento de consumo.” (O Sistema Totalitário, p.205)
2 Cf. RIBERIO, Renato Janine. Ao Leitor sem medo. p. 57
3 Assim como Hobbes, Freud, mais especificamente na obra O Mal Estar na Civilização, considera o homem um ser tencionado e agressivo, carente de um poder restritivo, como único meio de garantir a convivência civilizada num estado organizado e seguro. Todavia, a repressão necessária ficará por conta do indivíduo cujo destino estará delineado a matar boa parte seus desejos de incompletude.
4 “A lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não contrário à regra.” (Leviatã, XXVI, p207)
5 “Uma pena é um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens fique mais disposta à obediência.” (Leviatã, XXVIII, p.235)
6 “Portanto Deus, que vê e dispõe todas as coisas, vê também que a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer, e nem mais nem menos do que isso.” (Leviatã, XXI, p172)
7 Cf. BOBBIO. Thomas Hobbes, p.60
8 Cf. BOBBIO. Thomas Hobbes, p.60
9 Cf. BOBBIO. Thomas Hobbes, p. 123
10 Cf. RIBEIRO. A Marca do Leviatã, p. 78
11 Hobbes, além da preocupação com a geração de empregos e reforma agrária, tem uma preocupação com a seguridade: “E sempre que muitos homens, por um acidente inevitável, ser tornam incapazes de sustentar-se com seu trabalho, não devem ser deixados à caridade de particulares, mas serem supridos (tanto quanto as necessidade da natureza o exigirem) pelas leis do Estado.” (Leviatã, XXX, p.258) E Hobbes ainda estende sua preocupação para as questões tributárias, manifestando sua simpatia pela taxação sobre o consumo: “Pois que razão há para que aquele que trabalha muito e, poupando os frutos do seu trabalho, consome pouco seja mais sobrecarregado do que aquele que vivendo ociosamente ganha pouco e gasta tudo o que ganha, dado que um não recebe maior proteção do Estado do que o outro? Mas quando os impostos incidem sobre aquelas coisas que os homens consomem, todos os homens pagam igualmente por aquilo que usam e o Estado também não é defraudado pelo desperdício luxurioso dos parlamentares.” (Leviatã, XXX, p. 257)
12 Cf. MACPHERSON, A Teoria Política do Individualismo Possessivo, p.64
13 “Por boa lei entendo apenas uma lei justa, pois nenhuma lei pode ser injusta.” (…) “Uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e, além disso, evidente.” (Leviatã, XXX, p.258)
14 “Resta, portanto, que em toda igreja cristã, isto é, em toda cidade cristã, a interpretação da Sagrada Escritura, isto é, o direito de decidir todas as controvérsias, depende e deriva da autoridade daquele homem, ou corte, em cujas mãos se encontra o poder supremo.” (Do Cidadão, XVII, p267)
15 “Não existe nesta vida nenhuma ação do homem que não seja o começo de uma cadeia de conseqüências tão longa que nenhuma providência humana é suficientemente alta para dar ao homem um prospecto até o fim, E nesta cadeia estão ligados acontecimentos agradáveis e desagradáveis, de tal maneira que quem quiser fazer alguma coisa para seu prazer tem de aceitar sofrer todas as dores a ele ligadas; e estas dores são as punições naturais daquelas ações que são o início de uma mal maior que o bem. E daqui resulta que intemperança é naturalmente castigada com doenças, a precipitação com desastres, a injustiça com a violência dos inimigos, o orgulho com a ruína, a covardia com a opressão, o governo negligente dos príncipes com a rebelião, e a rebelião com a carnificina.” (Leviatã, XXXI, 270)
16 Cf. BOBBIO, Thomas Hobbes, p. 150
17 Cf. HOBBES, Leviatã, p. 172
18 “Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar paz e a defesa comum.” (Leviatã, XVII, p144)
19 Cf. BOBBIO: “…obedecendo ao Estado o cidadão mata dois coelhos com uma só cajadada: ganha a paz na terra e, ao mesmo tempo, também no céu.” (Thomas Hobbes, p. 149)
20 Cf. RIBEIRO. Ao Leitor Sem Medo, p. 206.
21 Cf. HOBBES, Leviatã, XLIII, p 412
22 “A teologia hobbesiana conforma: reduz os princípios do cristianismo à crença mínima em que “Jesus é o Cristo”, torna arbitrários os demais artigos de fé, suprime o Inferno e faz da “morte eterna” prometida aos maus apenas uma segunda e definitiva morte. Não é doutrina de um ateu, mas de um deísta: depurar a religião, procurar – como o cônego Hales – um denominador comum litúrgico, que afaste as divergências doutrinárias nas “coisas indiferentes”, que por isso mesmo são reguláveis pelo soberano e passa a expressar, simplesmente, a obediência de cada fiel, seu apetite de paz.” (Ao Leitor Sem Medo, p. 49)
23 Renato Janine Ribeiro na obra Ao Leitor Sem Medo, define como gêmeos o par medo-esperança, contudo, o sentido que aqui damos é de um par mais primitivo que seria formado pelo medo e pelo desejo.
Entre a solidariedade e a generosidade
Hoje dia da solidariedade vamos falar um pouco sobre o significado deste conceito que não é uma virtude nem um sentimento como muitas vezes empregamos. Solidariedade é a coesão existente entre as partes de um corpo. Um exemplo bem objetivo, que não dá margem à múltiplas interpretações, por ser objetivo, é as peças de um motor que são solidárias na medida que só se movimentam juntas. Costumamos confundir solidariedade com generosidade. Dar mostras de solidariedade é agir a favor de alguém cujos interesses compartilhamos, ou seja, defendendo os interesses dele, também estamos defendendo os nossos interesses. Dar mostras de generosidade é agir em favor de alguém cujos interesses não compartilhamos. Fazemos um bem sem que isso reverta em algum bem a nós. Você serve sem que isso sirva a você. A generosidade em princípio é desinteressada. Nenhuma solidariedade o é. Ser generoso é renunciar, pelo menos em parte, a seus interesses. Ser solidário é defendê-los com outros. Ser generoso é libertar-se, momentaneamente, do egoísmo, que nos identifica como humanos. Ser solidário é ser egoísta junto com os outros. A generosidade é uma virtude moral. A solidariedade é uma necessidade econômica, social e política. A moral nos diz: como somos todos egoístas, tentemos sê-lo um pouco menos. A política nos diz: como somos todos egoístas, tentemos sê-los junto dos outros, convergindo interesses. A moral preconiza a generosidade enquanto a política justifica a solidariedade. O que vale mais? Moralmente, a generosidade. Mas ela não resolve a questão da exclusão ou da precariedade. Você por generosidade dá esmolas, faz doações, tira do seu para dar ao outro, mas aquele que foi ajudado continua na periferia, continua na excludência e a sociedade nem por isso deixou de ser menos injusta. Há necessidade da solidariedade entrar em cena. O interesse do excluído de entrar no jogo do mercado precisa ser meu interesse também. Aí não estarei mais dando esmolas por compaixão. Mas estarei pensando em conciliar interesses, planejando caminhos de mobilização, praticando ações que alimentem a natureza egoísta dos dois, minha e do outro, ou melhor, dos três, minha, do outro e dos outros. Uma coisa é ser egoísta a tal ponto de sufocar e massacrar o outro, outra coisa é ser egoísta e ser solidário ao egoísmo do outro. Que o egoísmo vire um direito de todos!
O silêncio diante da finitude
Diante das dores da carne e dos sofrimentos da alma, ambos corpo, que a contingência da vida nos traz, me diz o amigo Filósofo e Professor Castor Ruiz, que o silêncio solidário é a palavra mais significativa nos momentos difíceis. O silêncio da cruz é o sinal da impotência humana, perante aquilo que somos: contingência. Mas a dor que sofremos não deixa de ser uma revolta contra essa contingência, um grito que ao ser de angústia pré-anuncia a possibilidade da esperança. A nossa revolta contra a finitude que somos, ou seja, a morte, é também uma reviravolta sobre a possibilidade de transcendê-la. A natureza não cria (e não pode metafisicamente) nada além de si mesma. A natureza não poderia ter criado uma espécie natural que se revira e se revolta contra a finitude da própria natureza finita que a criou. A mera natureza não poderia ter criado a experiência sobre-natural de negação de si mesma, que o ser humano vive porque se percebe para além da própria contingência que o habita. Este ser para a vida está transpassada pelo Infinito, que damos um nome Deus, apesar de todas as distorções institucionais que sobre ele determinam. A transcendência é a condição de nossa existência humana em todas as dimensões do cotidiano. A esperança de Vida para além da morte é um clamor natural de nossa própria natureza, algo exclusivo de nossa condição humana. Agora, o privilégio da Esperança traz consigo a exclusividade de poder sentir dor/angústia, algo que nenhuma outra espécie sente. O silêncio da cruz fala muita mais do que podemos ouvir, a dor angustiante contém muita mais esperança do que podemos acreditar. A impotência perante a dor e a morte pré-anuncia um poder que nos transcende, mas que nos pertence. Perante a cruz da contingência só cabe a atitude de fé. A fé do cético que pensa que seus olhos vêm tudo que existe, é uma fé tão cega como a do cristão que se abandona à confiança de Vida plena; a fé do cético que faz de sua dor o sentido último da existência é uma fé tão arriscada como a do cristão que tenta fazer da esperança um sentimento de abandono no poder último da Vida (Deus). Perante os limites do sofrimento humano, da contingência, não podemos sair da experiência de fé. A razão não explica, a explicação é impotente e a impotência se torna a única razão de si mesma. Acreditar nas próprias razões do ceticismo não deixa de ser um ato de fé na própria argumentação. Quando se argumenta, faz-se do argumento uma crença, e não temos como sair de nossa condição de seres que acreditam sempre! Perante a contingência humana (dor, morte), não há provas, nem explicações, só silêncio. Silêncio que longe de vazio é recheado de esperança, que possibilita re-ligar, acreditar na transcendência, na tão desejada infinitude, pela qual o amor se eterniza. Amor de mãe, amor de pai, amor de filho, amor de amante, amor pela vida.
Marcos Kayser
A classe média tem ibope para governar o país
Já deve ser de conhecimento de todos a pesquisa realizada pelo IBOPE, no último mês de agosto, que ouviu cerca de 2.000 pessoas em 143 municípios do país, indicando que entre as instituições em que os brasileiros menos confiam estão em primeiro lugar os políticos com 90%. Apenas 8% confiam nos políticos, sendo que 2% não opinaram. Maior desconfiança registrada desde 1989, quando o Ibope começou a fazer este tipo de pesquisa. Os políticos se encontram no topo da desconfiança, enquanto que os médicos são os mais confiáveis com apenas 16% de desconfiança, sendo que 3% não opinaram, ou seja, 81% confiam. Em matéria de credibilidade os médicos estão acima inclusive da polícia e do poder judiciário, cuja desconfiança preponderou sobre a confiança. A polícia ficou com 35% de confiança e 61% de desconfiança, sendo que 4% não opinaram. O poder Judiciário ficou com 45% de confiança e 51% de desconfiança, sendo que 4% não opinaram. Os médicos ficaram acima até da Igreja Católica que teve 71% de confiança e 26% de desconfiança, sendo que 3% não opinaram. Diante da repulsa e indignação manifestada pela população contra os políticos e da alta credibilidade dos médicos, já ouvi uma provocação: não estaria a classe médica habilitada para liderar uma mobilização nacional em torno das reformas tão urgentes para começar tirar o país do caos em que se encontra? Quem votou nos médicos, provavelmente tem conceito semelhante se perguntado sobre os psicólogos, os fisioterapeutas, os enfermeiros. Então o leque de profissionais com crédito aumentaria ainda mais, e a abrangência destes é ampla. Estão em todo o país, organizados em sindicatos, em federações e cooperativas. Não vislumbramos os médicos caminhando, cantando e carregando bandeiras de protesto. Também não estamos lançando os médicos à candidatura pública. Estamos apenas supondo uma potencialidade, existente na classe médica, em liderar estratégias de mudança da conjuntura política de nosso país. Porque as punições traduzidas nas cassações que deverão ocorrer ainda estarão longe de resolver nossos problemas estruturais. É preciso mais. É preciso mudar a constituição. É preciso descentralização do poder. E como o país está doente, precisando de uma cirurgia, porque remédios não bastam, a classe médica poderia entrar em ação. Mesmo que o pós-operatório fosse doloroso, provavelmente valeria à pena, pois o resultado seria uma sociedade digna e menos violenta. Parabéns médicos e contamos com vocês!
Marcos Kayser
Manifesto contra a morte
Esta é uma tentativa de fazer poesia, mas está mais para um manifesto contra a morte. De poesia só tem algumas simplórias rimas. Não é a confissão de uma depressão. Mais do que uma questão de inteligência, de racionalidade, de LOGOS como diriam os gregos é a a declaração de uma paixão pela vida:
Falar de morte parece mania de velho, velhice que se desconfia estar longe de alcançar.
Mas talvez falar da morte seja uma forma da vida celebrar.
Nascemos sem ninguém perguntar a nós se desejávamos vir ao mundo.
Aí, nos expulsam do nosso mundo. De dentro da barriga da mãe.
No primeiro instante, recorremos à única possibilidade de contestação, o choro.
Berramos, berramos, mas ninguém tem compreensão.
Muito pelo contrário, os que nos observam são só animação.
Somos solapados por uma intensa indignação.
Depois de um tempo, percebemos que há mundos aconchegantes.
Do choro, caímos no riso da brincadeira com o pai, com a mãe, com os irmãos e com os amigos que às vezes são mais do que irmãos.
Sem nos preocuparmos com o amanhã, vivemos como se tudo acontecesse agora.
Nesta fase a vida é bela e ninguém quer viver sem ela.
Jamais pensamos que a morte a espera.
O tempo vai passando e intencionamos apressá-lo.
Queremos ser grandes para podermos fazer tudo que bem entendermos.
Aí vem o tempo da adolescência. Para uns aborrescência.
Achamos que podemos tudo, inclusive o tempo dominar.
Pouco sabemos do mundo e a morte nem pensar.
Aí vem o tempo da consciência. Para uns inconsciência.
Temos a ciência que o tempo é soberano, inclusive para terminar.
É a dimensão da finitude em contraposição com o desejo de continuar.
Tem algo de errado nesta vida. Antinomia como Kant já dizia?
Justamente agora quando aprendemos a amar.
Como o fim se apresenta não acredito que se sucederá.
Morreu e pronto! Acabou tudo!
Quem sabe o mistério poderá nos salvar?
Quem diria, chegamos aos quarenta, cinqüenta, sessenta,…
No tempo de criança reclamávamos que o tempo não passava.
Queríamos ser grandes e o tempo não corria só caminhava.
No tempo da adolescência nos achávamos os tais.
Queríamos dominar o mundo e o tempo podia esperar.
Agora aos quarenta o tempo continua sendo problema.
A maioridade chegou, vencemos mas o tempo continua nos insatisfazendo.
Agora não mais porque caminha, mas porque voa.
O que fazer então para controlar o tempo sem suprimi-lo pois se assim fosse estaríamos sucumbindo?
Se não podemos matá-lo de raiva, não dá pra enganá-lo?
Quem sabe vivê-lo intensamente?
Não só este instante presente.
Mas também engendrar as coisas boas do passado aqui e agora.
Vocês, nossos amigos são as coisas boas da nossa vida, amigos de hoje e de outrora.
É podemos citar Oscar Wilde que diz que a vida é apenas um tempinho horroroso cheio de momentos deliciosos.
Seria muito cinismo dizer que a vida é bela.
Mas como domar a fera do tempo é impossível, porque não encenar agora?
Convidamos a todos para comemorar este dia que representa mais um dia de vitória sobre a maldita.
HOMO HOMINI LUPUS EM HOBBES E FREUD
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO DE FILOSOFIA
FILOSOFIA SOCIAL E POLÍTICA
HOMO HOMINI LUPUS EM HOBBES E FREUD
MARCOS KAYSER
São Leopoldo, junho de 2005.
HOMO HOMINI LUPUS EM HOBBES E FREUD
Introdução
Aproximar Hobbes e Freud pode causar certo estranhamento. Um por ser considerado filósofo, outro psicanalista, o primeiro voltado à política, o segundo à psiquê. Castoriadis começa a desfazer este suposto distanciamento e afirma que a psicanálise tem, no essencial, o mesmo objetivo que a política, ou seja, a autonomia do sujeito. Talvez por ser filósofo e psicanalista, Castoriadis não só compreendeu mais facilmente a aproximação destas duas áreas do conhecimento, como colocou uma pergunta comum a ambas: “como posso ser livre, se sou obrigado a viver numa sociedade em que a lei é determinada por outros?” E continua: “como posso ser livre se sou governado pelo meu inconsciente1?” Os que insistem na separação e no distanciamento dirão que a primeira pergunta é feita para o filósofo e a segunda para o psicanalista. Assim, a primeira pergunta quem estaria habilitado a responder seria a Filosofia, enquanto que a segunda seria a Psicanálise. Aqui, sob ambos olhares, vamos tentar abordar o pressuposto de uma tendência humana ao conflito, à destruição, à morte. “O inferno são os outros” como diria Sartre. “Homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem), conforme Hobbes e Freud.
Da observância de diversas formas de manifestação da violência que marcaram a história da humanidade ao longo dos séculos e se prolongam nesse início de século XXI, supomos que, com outras vestes, em plena sociedade civilizada, continuemos sendo bárbaros. Desejo de mais e mais poder e constante ameaça da morte violenta, semelhante ao estado de natureza, teorizado por Hobbes e que se confirma nos escritos psicanalíticos, chamados sociais, de Freud, são marcas do nosso tempo. Hobbes e Freud, coincidem quanto ao pressuposto antropológico e/ou psicológico do “homo homini lupus”, como também na necessidade de um Estado forte como única via para a paz. Hobbes vê nesse Estado, instituído pelo pacto entre os homens, num ato da razão e da vontade, uma saída triunfante, pois é garantia de paz e prosperidade. Freud vê como uma saída necessária, mas nada tranqüila, visto que estará carregada de mal-estar, pois o indivíduo terá seu desejo de liberdade reprimido, na medida em que cede parte dela em troca de segurança.
Apresentaremos sinteticamente alguns sintomas, para falar numa linguagem não exclusivamente filosófica, dessa condição agressiva da natureza humana, a ponto de Hobbes e Freud usarem a metáfora “homo homini lupus” para expressar a luta primitiva entre Eros e Tanatos, que se estende na sociedade e nos faz refletir sobre as formas de superar e/ou suportar o paradoxo inquietante do desejo de paz diante da realidade da guerra.
Homo homini lupus em Hobbes
Uma espécie de psicologia da natureza humana é o ponto de partida de Hobbes. O homem é analisado numa condição primitiva da existência, ou melhor, em condições mínimas de sobrevivência. Este estado, a que Hobbes denomina de estado de natureza, é reflexo da condição primitiva, em que o desejo insaciável do homem, partilhado de uma liberdade total, ausência de obstáculos, e de uma igualdade generalizada, onde todos podem tudo, coloca o homem em estado de guerra, em constante ameaça da morte violenta. A lei natural apesar de existir não tem uma valoração prática, na medida em que não há um poder capaz de julgar nem aplicar as sanções conseqüentes de eventuais desobediências. No estado de natureza, todos são juízes e cada um obedece tão somente a si.
A indeterminação histórica do estado de natureza hobbesiano e a possibilidade de se constituir exclusivamente numa hipótese lógica, arquitetada para demonstrar os elementos constitutivos do homem, não desfaz a validade da teoria, visto que, em tal estado, as relações humanas competitivas possuem similaridades com as relações observadas nas sociedades contemporâneas, mais especificamente nas sociedades de mercado possessivo, conforme cita Macpherson. Podemos identificar nestas sociedades homens calculistas de seus próprios interesses, capazes de apoiarem um governo e pactuarem ao seu favor, desde que este soberano imponha regras que permitam a invasão sem a destruição mútua:
“Apenas na sociedade de mercado possessivo é que todos os indivíduos precisam se invadir mutuamente, e somente nelas podem fazê-lo dentro das regras da sociedade.” (Teoria do Individualismo Possessivo, II, p. 109)
Hobbes escreve em meio à guerra civil inglesa. Tanto vida pública como privada estão imersas no conflito configurando um paradoxo que se estende aos nossos dias: por que deflagrar uma guerra, por em risco a vida e destruir-se precocemente, se o maior desejo do homem é escapar do maior dos males: a morte? E a pergunta que segue: como alcançar a paz num palco de sucessivos conflitos? Uma das primeiras conclusões de Hobbes é que o estado de total liberdade e igualdade, no qual todos podem tudo, inclusive se invadirem mutuamente já que possuem as mesmas potencialidades, precisa ser ainda nesta vida superado.
Se a realidade factual de Hobbes por causa da guerra é turbulenta, o momento da história do pensamento humano também é. Processa-se a ruptura do medievo com a modernidade, no habitat de Hobbes, a passagem da Inglaterra medieval para a Inglaterra moderna. A fé cede seu papel de protagonista à razão. A felicidade, a grande meta dos homens, precisa começar a ser conquistada aqui na terra e não ficar aguardando o dia seguinte, numa suposta transcendência. Hobbes provoca uma inversão da perspectiva clássica da felicidade. Enquanto que, para os filósofos antigos, a idéia de felicidade estava atrelada a uma fruição tranqüila do bem supremo, um movimento evolutivo, vislumbrando um fim pretendido e exaltado, em que o desejo poderia repousar, para Hobbes a felicidade está caracterizada pela inquietude de um movimento sem fim determinado. A inexistência de um fim último implica na impossibilidade de projetar o contentamento do homem para o futuro, se assim fosse, cessaria a sucessão contínua do movimento o que significaria a cessação da própria felicidade. O êxtase para Hobbes é agora. Nossa ganância é por um bem presente. Só a conquista deste bem será garantia do próximo bem. Bem aqui tem a significação de poder. Estamos assim condenados à inquietação e ao descontentamento, na medida que a busca é infindável, não se esgota na conquista momentânea. A natureza da felicidade se deduz deste esforço repetitivo, chamado desejo, conatus:
“…a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito, pois não existe o finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais. E ao homem é impossível viver quando seus desejos, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A felicidade é um contínua progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo.” (Leviatã, XI, p.91)
Os objetos são bons porque eles são úteis e eles são desejados por essa razão. A busca de um novo bem é busca de algo útil à manutenção do movimento e na medida que se acumula uma quantidade de bens, incrementa-se uma quantidade correspondente de poder. O incremento do poder de um indivíduo implica o decréscimo de poder do outro.
Quanto mais bens um indivíduo obtém, menos o outro tem. Temos uma relação muito mais econômica do que fraterna. O ser humano não é naturalmente social, não é por natureza um animal político com tendência a uma comunhão. Sob esta idéia poderíamos pensar que o homem não é por natureza cristão. Uma eventual tristeza diante da desgraça do outro é motivada mais pelo medo do que um sentimento de amor pelo próximo:
“Assim, não buscamos a sociedade naturalmente e por si própria, mas sim para que possamos dela receber alguma honra ou lucro.” (De Cive, I, 30)
“Toda a sociedade é portanto, ou para o lucro, ou para a glória; isto é: não tanto por amor de nossos próximos quanto pelo amor de nós mesmos.” (De Cive, I, 31)
Numa condição em que se caracteriza o individualismo possessivo se faz-se necessário aumentar o poder e se precaver do inevitável, mas imprevisível, ataque do outro. É razoável antecipar-se ao ataque inimigo, e a melhor estratégia é agredir antes de ser agredido. A famosa frase usada no futebol, “o melhor ataque é melhor defesa”, pode também ser colocada à serviço da política. E Hobbes previne:
“que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de modestos limites, não aumentassem, por invasões, o seu poder, não conseguiriam subsistir por muito tempo limitando-se a uma atitude defensiva (Leviatã, XIII).
Para Hobbes, as três causas principais encontradas na natureza (ou psicologia) do homem que o levam a guerra são: a competição, a desconfiança e a glória. Todas vestidas de dois constituintes fundantes do homem e da sociedade: o desejo e o medo. A primeira motivada pelo lucro, a segunda pela segurança e a terceira pela reputação. Todas são inclinações que no estado de natureza, sem um poder suficientemente forte capaz de julgar e impor a regra, transfiguram o homem em lobo de homem (homo homini lupus):
“Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção.” (Leviatã, XIII, p109)
O homem hobbesiano não quer apenas vencer a batalha contra o inimigo e sobreviver, quer viver melhor, e, por isso, como homem da vontade e da razão, abre mão de parte de sua liberdade em troca de segurança e prosperidade. Institui o Estado absoluto, através do pacto. E por que absoluto? Porque o ímpeto do homem, que pode ser associado à pulsão de morte freudiana, só pode ser contido por um poder que concentre o poder de todos, absolutamente mais potente. Para conter, em certa medida, a insaciabilidade do desejo humano, só mesmo um poder capaz de intimidar o lobo por meio do medo da punição. O soberano estabelece um poder coercitivo terreno para assegurar o cumprimento das leis de natureza. A violação da lei por parte dos súditos acarretará em punição por quem detém todo o poder de punir: o soberano. Além da punição terrena, tem a punição divina que consiste na morte eterna. O balizamento para determinar as transgressões é dado pelas leis civis, criadas para tornar escritas e públicas as leis naturais. Nas mãos do soberano está o monopólio do medo.
Mas como o homem não é só medo é também desejo, Hobbes, da necessidade de manter o homem com a esperança de desejos satisfeitos, completa sua mecânica de controle com o componente da recompensa terrena e divina. Na terra o soberano recompensa seus súditos com a garantia da segurança e oferecendo as condições necessárias para que cada súdito, sob sua própria diligência, conquiste riqueza e conforto. No céu a recompensa está na vida eterna.
Hobbes entende assim que numa sociedade controlada por um Estado absoluto, que se impõe pela ameaça do medo da punição e pela esperança da recompensa, o lobo transforma-se em cidadão. Todavia, a psicologia hobbesiana não deu muita atenção para os desejos reprimidos deste cidadão.
Homo homini lupus em Freud
Apesar das obras ditas sociais de Freud não merecerem o mesmo entusiasmo dedicado por seus analistas aos demais escritos, os mais atentos, ou melhor, os mais interessados perceberão o quanto para Freud era pertinente a extensão de suas teorias da psique do indivíduo para o contexto social. Na medida que o exterior, mais especificamente, o outro, intervém no indivíduo, como modelo e também como adversário, seria no mínimo imprudente ignorá-lo.
Coincidindo com Hobbes, como propósito da vida humana, Freud identifica a busca intensamente do prazer, evitando a dor, concluindo que a vida se define pelo princípio do prazer2. Princípio geral que domina o funcionamento do aparelho psíquico do indivíduo desde o início de sua vida. Todos desejam ser felizes:
“Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.” (Mal-Estar na Civilização, p.94).
É o princípio do prazer, inerente ao psiquismo humano, que decide sobre o propósito da vida do indivíduo e conta com a pulsão de vida (Eros) para chegar ao êxtase existencial. Todavia, Eros não está sózinha, concorre com Tanatos, pulsão de morte3, que segundo Freud, tende a forçar o indivíduo ao retorno de seu estado anorgânico (não-vivo, anterior de ser vivo). Mas como se não bastasse, a luta entre Eros e Tanatos, Eros possui uma dualidade objetiva que a coloca em situação de conflito intrínseco. Eros voltado para o prazer e Eros voltado para a união com os outros, em busca de novas combinações de vida.
Freud reconhece, entretanto, que esse objetivo geral da felicidade jamais será satisfatoriamente alcançado, uma vez que tanto o macrocosmo, ou seja, a civilização4, quanto o microcosmo do homem, ou seja, o corpo, representa muito mais sofrimento do que felicidade. Para Freud as principais fontes de infelicidade e sofrimento, são o nosso próprio corpo, as forças exteriores da natureza e as adversidades oriundas das relações que estabelecemos com o outro, sendo este último enfrentamento o mais penoso de todos:
“… os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus.” (Mal Estar na Civilização, p133)
A denúncia do homem lobo é grave. Trata-se de uma tendência agressiva, uma pulsão5 que atravessa o comportamento humano e se expressa nas mais variadas formas de relação entre os seres humanos. A agressividade não é determinada pela sociedade, já nos tempos primitivos, como no estado de natureza hobbesiano, esta pulsão reina no interior obscuro da individualidade. Ligada ao narcisismo e à onipotência, se estende ao exterior, à sociedade, pela negação do outro, que só existe como instrumento de satisfação do ego6 (eu). A sociedade impõe limites e o ser humano se vê obrigado a moderar suas expectativas, domesticando o princípio do prazer, reduzindo-o a um princípio de realidade7. Colocando em primeiro plano a árdua tarefa de evitar o sofrimento, a busca pela satisfação do princípio do prazer passa a ser secundária. O dilema está criado. Se ao homem não é permitido realizar plenamente o programa do princípio do prazer, o mesmo homem não deseja abandonar o esforço para conseguir aproximar-se da sua consecução, passando a ser um desafio essencialmente subjetivo que perpassa o indivíduo ao longo de sua existência.
Apesar dos regramentos e das limitações impostas ao homem em sociedade, impedindo a conquista da felicidade idealizada, a civilização é um mal necessário. Como Hobbes, Freud defende que a vida dos homens só é viável quando uma força com poderes maiores do que o poder individual se faz presente:
“A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização.” (Mal-Estar na Civilização, p.115)
Se, por um lado, as restrições viabilizam a vida em sociedade, trazem, por outro, sérias implicações à organização psíquica do ser humano. O homem se constitui como ser social, aprisionado a um dilema que parece insolúvel. No estado de natureza tinha uma liberdade ilimitada, sem nenhum valor, uma vez que um indivíduo livre podia colocar em risco a vida do outro sobre o qual avançava e também a sua própria vida, bastando esbarrar num indivíduo mais forte à sua frente, diante do qual decaía. No estado de sociedade o Estado como entidade reguladora, mantém uma certa ordem, às custas de restrições às liberdades individuais. Freud identifica que, por conta dessa liberdade perdida, o ser humano estará permanentemente em conflito com a própria civilização, reconhecendo que cada revolução, cada impacto que a humanidade experimenta, é uma tentativa de externar, e superar, esse conflito, essa inquietação. E, é assim que se dá evolução da civilização:
“O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo.” (Mal-Estar na Civilização, p.116)
Assim como Hobbes, Freud sentencia: “O homem civilizado trocou a parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”.
Conclusão
Na tentativa de proteger o homem do lobo, ou converter o lobo em cidadão, a proposta de Hobbes da criação de uma instância superior, no sentido de pura imanência do poder, que viabilizasse a paz, sem ignorar a insaciabilidade do homem desejante, falhou se observada na história do absolutismo. O Estado absoluto não foi capaz de pôr fim à guerra de homens contra homens. Hobbes soube identificar o desejo e o medo como elementos constitutivos do homem que o colocam em preeminência do conflito, mas ignorou a possibilidade do auto-domínio, preferindo apostar todas as “fichas” num poder externo como meio de superar o conflito. Hobbes não acreditou na possibilidade do suportamento, capacidade do corpo humano suportar o conflito, nem confiou na possibilidade de transformar o conflito degradante em conflito produtivo. Hobbes entendeu que a saída triunfante para o problema da guerra estava na criação do monstro disciplinador, o Leviatã. Não contou que o monstro tinha corpo humano, era homem sujeito à insaciabilidade do desejo e transgressões. Hobbes deixou o soberano (governo) a mercê do próprio desejo, sem limites, sujeito à insaciabilidade e ao auto-interesse de si mesmo. Seguindo os pressupostos de Hobbes, as formas de coerção e premiação, aplicadas a quem detém a soberania, não são suficientemente eficientes para policiar a polícia, ou seja, o soberano. Hobbes caiu na sua própria armadilha. Concebeu como necessária a existência de um poder absoluto para limitar o desejo insaciável dos homens mas não pensou na necessidade de limitar o soberano que também é homem. Provavelmente sua coerência racional obrigou-o a defender a premissa que diz: um absoluto para ser limitado não é mais absoluto, portanto, um absoluto não pode ter limites, não pode ser limitado por alguém. Só se, para Hobbes, o soberano não seja homem e, portanto, não seja lobo.
Freud, sem entrar no mérito da política de Estado, é como Hobbes, defensor da propensão humana à felicidade, todavia, é trágico. A civilização impõe restrições e proibições ao princípio de prazer (Eros) para conter a agressividade inata, mas, ao mesmo tempo, alimenta a tendência do ser humano de retornar ao estado inorgânico, à morte. Para Freud não há saída, estamos condenados ao triunfo da pulsão de morte. Ao final o lobo triunfará. Não há solução externa que iniba a tendência agressiva. Só nós resta uma alternativa, a que denomino, por minha conta e risco, de suportamento, que passa pelo conceito de auto-domínio, dar conta das perdas, dar conta da dor.
No funcionamento psíquico, quanto mais o supereu (superego) for suprido de referenciais éticos, mais severidade terá com as intenções instintivas do isso (id). Supereu vazio é condição de excelência para a pulsão de morte. “O lobo está livre para atacar”. Para que o indivíduo dê conta da impossibilidade da realização de boa parte de seus desejos, a civilização tem o papel de reforçar os padrões morais e éticos, sem os quais ela não se sustentaria.
Retomando Castoriadis, para quem “a plena democracia, e a aceitação do outro, não formam a tendência natural da humanidade” (Figuras do Pensável, p.268), a sociedade não é instituída apenas para conter a violência, mas principalmente para fazer o indivíduo sair de sua onipotência e de seu egocentrismo (mônada psiquíca), reconhecendo que fora de si há outros seres humanos. Respondendo as duas questões de Castoriadis, apresentadas na introdução deste trabalho, ele mesmo identifica no desenvolvimento de uma subjetividade reflexiva, em que o indivíduo estabelece um outro tipo de relação consigo mesmo e com o seu inconsciente, a condição de possibilidade para a conquista de uma autonomia. E como a autonomia, segundo o próprio autor, não pode ser imposta nem ensinada, a psicanálise é o acesso à autonomia, a partir da descoberta de motivações e pulsões escondidas e recalcadas em mim, com a ajuda do outro.
Em suma, é preciso manter no homem acesas as chamas do desejo (Eros) sem que elas o consumam e se generalizem em guerra (Tanatos), e, para isso, é preciso limitar sem suprimir. Ao mesmo tempo as condições de possibilidade para a paz passam pelo auto-domínio que só pode ser conquistado através do desenvolvimento de uma ética da responsabilidade. Na onda do individualismo possessivo, seria dizer: o homem precisa se conscientizar que sua felicidade depende da felicidade do outro. Meu egoísmo precisa ser solidário com o egoísmo do outro.
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1 O inconsciente tem um status de outro.
2 Atividade psíquica que tem por objetivo evitar o desprazer (aumento das tensões) e proporcionar o prazer (redução das tensões).
3 Força contrária à pulsão de vida que tende dissolve-la e remeter o indivíduo a seu estado inorgânico original
4 Freud no Mal Estar na Civilização, p. 109, cita: “a palavra civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais e que sermos a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.”
5 Conforme Laplanche e Pontalis, pressão ou força energética que faz o organismo tender para um objetivo, cuja fonte está numa excitação corporal
6 Conforme David E. Zimerman, ainda persiste a clássica definição de que o ego (eu) é a principal instância psíquica, funcionando como mediadora, integradora e harmonizadora entre as pulsões do id (isso), as exigências e ameaças do superego (supereu) e as demandas da realidade exterior. Entende-se por id uma fonte de energia psíquica, um reservatório de pulsões quase todas inconscientes.
7 Aparece como uma modificação do princípio de prazer, sem suprimi-lo, que garante a obtenção das satisfações no real. A criança recém nascida ainda é incapaz de diferenciar o seu Eu do mundo externo. O seio da mãe é o primeiro objeto que mostra a existência de um fora.